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                                            FANTASIAS DE NATAL

                                                                      Flávio Aguiar


           “Natal” é uma palavra em português que se refere, originalmente, a “lugar de nascimento”. Por exemplo, a minha cidade natal é Porto Alegre, o meu estado natal é o Rio Grande do Sul, o meu país natal é o Brasil. Tudo porque ela deriva de uma palavra da língua latina, “Natalis”, que era o nome de um deus que favorecia os nascimentos. Ela, essa palavra, faz parte de uma extensa família, em geral referente ao tema do “nascimento”. Por exemplo, “natalidade”, que se opõe a “mortalidade”. Assim: a taxa de natalidade (número de nascimentos por mil habitantes) no Brasil está caindo. A taxa de mortalidade (número de mortes de crianças antes de um ano de idade) também está caindo.

 

          Há também “natalício”, que pode significar “o dia do aniversário”. Mas também é um nome próprio, exclusivamente masculino. Só existe o “seu Natalício”. Não existe uma “dona Natalícia”. Embora a gente possa falar da “data natalícia”. Em compensação, só existe a “dona Natália”, um nome feminino. Não existe o “seu Natálio”.

 

          Por outro lado, acho que eu nunca diria “a minha língua natal”, mas “a minha língua nativa”. Eis outros membros proeminentes da família: o nativo, a nativa.

Existem famílias de palavras que são primas da palavra Natal. Por exemplo, “natureza”, que veio da palavra latina “natura”. Até em alemão existe a palavra “Natur”, em inglês “nature”, línguas que não são latinas. “Natural” faz parte desse grupo, com diversos significados, entre eles o de lugar de nascimento: eu sou natural de Porto Alegre. Outras primas de “Natal” são “nação” e “nacional”, que vêm do latim “natio”.

 

          E Natal também tem a ver com o verbo nascer. Daí a lista de agregados e clientes é enorme. Por exemplo: Nascituro, o que vai nascer, e nascido, o que já nasceu.

          Também Nascente, que quer dizer três coisas: aquele que está nascendo, o lugar onde o sol nasce (por oposição a Poente), e também fonte d’água. A gente diz “o Nascente” – a leste – e “a Nascente – a fonte. Que também se pode dizer “Manancial”. Ou “Manantial”, como se dizia na nossa fronteira antiga com os castelhanos, que se dizia “Manantsial”, num jeito de falar que só existia por lá.

 

          Mas tem mais. A palavra grega “Gnosis”, que quer dizer “Conhecimento”, deu em Latim Gnata, filha (daí veio Nata) e Gnatus, filho (daí veio Natus), mas nesse caso “filhos reconhecidos”, por oposição aos “ilegítimos”, ou “Ignoti”, desconhecidos. Houve várias derivações, ou coincidências, como Ignorante, o que desconhece, mas também verbos, como Ignoro, Ignorare, que quer dizer desconhecer, ou Ignosco, Ignoscere, que quer dizer perdoar. E desse conjunto faz parte também o verbo Innato, Inatare, que em português deu nadar, ou simplesmente boiar, permanecer na superfície, o que também nos deu a palavra “Nata”, aquela película que bóia na superfície do leite e de que, normalmente, as crianças têm um certo nojo.

 

          Pois é. Mas Natal quer dizer também uma certa data, uma época do ano, referente à comemoração do nascimento de Jesus Cristo, época de ganhar e dar presentes, fazer festa, lembrar da infância. Se eu me lembro da minha infância, nesse momento do ano, o que significa “Natal”?

 

                                          foto flia_Flvio

 

          Natal era sinônimo de “Papai Noel”, o bom velhinho que trazia presentes. Quando eu era muito criança, a gente ia dormir cedo na noite de 24 de dezembro, e no dia 25 acordava cedo para correr até a árvore de Natal e descobrir os presentes que ele tinha trazido. Árvore de Natal? Era um pinheiro – naquela época uma Araucária, hoje proibida de cortar – decorada com bolas e até com algodão fingindo que era neve. O Natal era uma festa muito familiar, a pequena família: pai, mãe, filhos, avós, netos.

A foto mais antiga que tenho de minha família é a de meus avós maternos com os filhos, entre eles minha mãe, a caçula, ao lado de uma árvore de Natal. A foto é de 1916 ou 1917. Fico pensando no mundo ao redor dela: a Europa na Primeira Guerra Mundial, o Império Alemão morria, a União Soviética nascia.

 

          Depois aprendi que o Papai Noel não existia, era uma ficção representada por adultos. Já nessa época a distribuição dos presentes se fazia na noite do 24, normalmente na casa de um vizinho da nossa. Era uma festa ampliada: vinham os agregados, empregadas domésticas e seus filhos, tios, primos, e se comia muito.

          Eu invejava os adultos que representavam o Papai Noel, com aquela roupa vermelha, o disfarce dos bigodes e da barba brancos, as botas pretas de plástico fingindo ser de couro, com aquele ar de ter vindo de países frios, ao norte, onde era inverno. As crianças menores não reconheciam o adulto. Eu queria ser um Papai Noel no Natal. Distribuiria presentes. Teria crescido. Seria alguém importante.

Na minha cidade natal, Porto Alegre, também se representava, às vezes, um “Presépio Vivo”. Eu invejava aquilo também, até o boneco de plástico que representava Cristo na manjedoura.

 

          Mal sabia o que iria me acontecer.

          A primeira vez que entrei numa representação de Natal foi em Burlington, Vermont, nos Estados Unidos, quando fui um “exchange student”. Convidaram-me para participar da representação natalina da Igreja Metodista que minha família norte-americana freqüentava. Eu fui um dos Reis Magos, Melquior, para ser mais exato. Gaspar era meu irmão norte-americano, e Baltazar um dos poucos negros da cidade que freqüentava a igreja. E lá entrei eu na Igreja, ao som de um órgão, olhando o céu, como se visse uma estrela, em direção ao altar, com manto, coroa, barba postiça e tudo. Tenho uma foto. Depois, me pediram para tocar acordeão. Toquei. Eu só sabia duas músicas. Felizmente, uma delas era Noite Feliz. Toquei com barba, manto, coroa e tudo. Deu certo.

 

          Minha experiência posterior veio décadas depois. Vivendo no Canadá, a creche de minha filha mais moça, então com quatro anos, me convidou para ser o Papai Noel da festa. Aceitei. Foi legal. Receberam-me como quem, num país gelado, recebe quem vem dos trópicos festivos. Puseram até música de batucada brasileira para receber o “Papai Noel”. Eu disse que estava chegando do Rio de Janeiro. As crianças adoraram aquele Papai Noel festeiro. Mas nunca esqueci o comentário dessa minha filha: “esse Papai Noel usa sandálias iguais às de meu pai”. As crianças tinham ficado mais observadoras.

 

          Minha terceira experiência foi em Maceió, capital do estado de Alagoas. Eu estava num Congresso do Sindicato Nacional dos Professores Universitários. Era dezembro. De repente, no meio de uma das sessões, um colega me bateu no ombro e me pediu que eu fosse até a porta do auditório. Fui. Um grupo de estudantes secundaristas me esperava. O meu colega me explicou: eles eram de uma escola pública, havia um concurso, para ganhar eles precisavam levar um poeta que declamasse, no auditório, um poema de Natal. Você é poeta, eu sei, me disse o colega.

 

          Olhei o bando: eles e elas me olhavam com olhares pedintes. OK, eu disse, eu vou. E lá nos saímos pelas ruas de Maceió, atrás da escola. Não caminhamos muito. Chegamos. O prédio, pelo menos, era bonito. Esse tipo de concurso, no Brasil, se chama “gincana”. Só que aí eu me lembrei que não lembrava de nenhum poema de Natal, assim, de cor. E agora?

 

          Felizmente, houve uma circunstância que me ajudou. Um dos alunos chegou até mim com um pacote e me disse: “aí está uma roupa de Papai Noel”. “O senhor tem que vestir, é a regra da gincana”. “O quê?, eu disse. “É”, ele disse, “é a regra”. Aí eu disse: “Está bem, eu preciso ir até uma sala para me vestir”. Eles me levaram até uma sala de aula. E lá eu vesti a roupa de Papai Noel, botei a barba postiça, as botas de plástico, travesseiro na barriga para parecer gordo, algodões nos ombros para fingir que era neve (fazia um calor de rachar), e aproveitei o tempo para rabiscar um poema num papel que achei, com a caneta que eu tinha levado. Entrei no palco do teatro da escola, um prédio antigo, provavelmente do século XIX, li o poema, recebi um aplauso triunfal, o grupo que lá me levara ganhou a gincana. Saí de lá vitorioso, caminhei de volta até o lugar de encontro, embriagado por aquela vitória com que eu comemorava meu sonho de infância.

 

          Bom, o papel do poema eu perdi, e o próprio poema eu esqueci. Felizmente. Devia ser muito ruim, de tão improvisado que era. Mas tudo aquilo junto incluído foi um dos melhores poemas que eu já criei, acho.

 

          E agora aqui em Berlim, um grupo de alunos de português brasileiro, para quem a minha mulher dá aulas na universidade, me pediu para ler uma crônica natalina na sua festa. Lá vou eu. Felizmente, ainda não me pediram para que eu me vista de Papai Noel ou de Rei Mago. Mas nunca se sabe, pois as fantasias de Natal podem sempre se realizar.

 

 

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