Machado de Assis e Alain Robbe-Grillet nos meandros do ciúme * |
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Pouco mais de meio século separam as duas obras, mas é tempo suficiente para revelar transformações e embates pelos quais a criação literária passou. Não se pode descontextualizar esses escritos, esquecer que entre a existência de ambos aconteceram duas Guerras Mundiais, Proust e James Joyce, Freud e Heidegger, tudo isso implicando mudanças radicais no universo social, nas relações interpessoais, no conhecimento do homem sobre si mesmo, nas manifestações artísticas em geral. Ademais, a constituição de cada um desses textos, por si só, já indica como ambos são histórica e literariamente originados e plasmados por seus autores. Vejamos então como a questão do ciúme aparece neles.
Machado, em Dom Casmurro, está no ápice de seu domínio de um realismo literário intimista, com pleno conhecimento da criatura-personagem, em suas ambivalências e ambiguidades, insinuações e cismas, deixando o leitor entrevê-las pelas franjas do discurso e nos volteios da linguagem.
O narrador-personagem, Dom Casmurro ou Bento Santiago ou Bentinho, relata sua história em flashback na 1ª. pessoa. Em tom memorialista, com intimismo contido, mostra seu ponto de vista – e só o seu – com suposições, mas sem relatar o que se passa na mente das demais personagens; é apenas um observador - delas e de suas ações. Diz ele sobre o que vai relatar: “... vou deitar ao papel as reminiscências que vierem vindo. Desse modo, viverei o que vivi (...) (p9- Martins Fontes, 1988).
Tudo indica que o leitor, cortejado pelo narrador com chamamentos não raro irônicos, irá acompanhar a narrativa pari passu. Mas esta não é linear e o confessional de fato não será o tom predominante. A ironia e o humor se encarregam de modular eventuais arroubos emocionais ou o confidencial pleno. Até porque, concordando com um velho tenor, está Dom Casmurro ironicamente convencido de que “a vida é uma ópera”, uma representação, ainda que verossímil: “Cantei um duo terníssimo, depois um trio, depois um quatuor ...” Mas Bentinho se permitirá essa auto-ironia lá às tantas.
Só no capítulo CVII (107) vai registrar uma primeira manifestação ciumenta, íntima e metaforicamente revelada, ao se referir ao mar que teria distraído a atenção de Capitu, enquanto ele lhe falava de astronomia : “ ... não fora o mar que lhe provocara ciúmes, mas o que poderia estar na cabeça dela”. (p, 264). Já aí se percebe um processo emocional em construção, não ligado a fatos, mas a conjeturas.
Assim se insere o ciúme no contexto ficcional, sutilmente, entremeado de dúvidas que logo dão lugar à certeza. Bentinho, em tom de cumplicidade com o leitor, vai desvelando o que se passa consigo:
Eis um quadro típico da representação do ciúme amoroso, que torna o ciumento um obsessivo, e é esse quadro que a literatura mais sabe explorar, levando, não raro, a desfechos catastróficos, como o que anuncia Dom Casmurro:
Machado prolonga esse anti-climax numa cena em que – desviando-se da finalidade inicial (matar-se), Dom Casmurro quase obriga o filho a tomar o veneno. Essa cena - e ante reiteradas alusões do marido a seus amores com Escobar, já então morto - leva Capitu ao desabafo: “Pois até os defuntos! Nem os mortos escapam aos teus ciúmes” (333). E assim fica selado e qualificado o comportamento doentio de Bentinho, por ele mesmo relatado.
Á revelia de um possível desfecho de sangue, dá-se, porém, um acerto socialmente aceitável: a família embarca para a Europa, de onde Bentinho volta e para onde retorna algumas vezes, até não deixar mais o Brasil, onde recebe o filho, já adulto, quando então declara: “... posto que a idéia da paternidade do outro me estivesse já familiar, não gostava da ressurreição”. (346).
E é essa fleuma que envolve o final da narrativa, embora ele ainda relembre “os olhos de ressaca”, de “cigana oblíqua e dissimulada”.
Passo, então, ao livro de Alain Robbe-Grillet, O Ciúme. O autor pertence ao grupo dos escritores que, nas décadas de 50-60 pretendem desconstruir o romance convencional, criando o nouveau roman.* Este é proposto como uma narrativa em que a história dá lugar a pequenas sequências de acontecimentos sem continuidade cronológica, assim como as personagens não são apresentadas pelo que pensam ou sentem, mas apenas em ações; portanto se trata de um processo bastante diferente do realizado no romance convencional, que enfatiza a perspectiva psicológica, a história, o enredo, como se constata em Dom Casmurro.
O autor joga duplamente com o sentido do título da obra. Por um lado, trata do ciúme (jalousie) de um anônimo (supostamente o marido) que espia sua mulher (identificada apenas como A...) e o amigo que ela recebe, Franck, segundo insinua o narrador, amante dela. Por outro lado, é atrás de uma persiana (também jalousie em francês) que ele os observa, como se estivesse onipresente. Assim, o esquema do livro pode ser visto como o do clássico triângulo amoroso. Cabe aqui assinalar o que escreve Donatella Marazziti, ao tecer considerações sobre as origens do vocábulo ciúme:
O narrador anônimo, atrás da persiana, se põe a descrever detalhada e obsessivamente o cenário dessa trama ciumenta, como se uma lente substituísse seu olhar. Ou, como declara Robbe-Grillet, como se o narrador estivesse ausente do romance, “sua consciência é inteiramente voltada para o exterior e ele não observa jamais sua própria interioridade” ( p. 86 –Préface de . Alain Robbe-Grillet, Préface à une vie d'écrivain, Editions du Seuil, 2005.)
Entre a descrição de cenas e cenários e pequenas sequências narrativas, repetidas com mínimas variações e pequenos diálogos, se desenrola o relato. Trata-se de um texto exemplar do nouveau roman. O que prevalece é a descrição pura e simples de ambientes ou de ações, como a de A ... penteando os cabelos e o observador ou suposto marido circulando por espaços da casa, aparentemente sem outro propósito que o de descrever tudo em pormenor.( p. 38-39):
O narrador de Robbe-Grillet parece utilizar, para registrar a cena, a impessoalidade da “objetiva”, isto é, da lente da câmera fotográfica ou de filmar. Tal recurso tornaria o registro mais imparcial, não teria a subjetividade do observador humano, como a que perturba a visão do narrador-personagem de Machado.
Esse exercício de disciplina obsessiva ( patológica diriam os analistas) tende a irritar o leitor, que fica em suspenso, à espera de algo mais que não acontece... ou acontece a meias. Enfim, cabe ao leitor construir a história com indícios espalhados pelo texto, como pistas para desvendar um acontecimento, num romance policial. Melhor, num filme policial, pois o que mais se sabe é dos exteriores, do cenário, e nada do que se passa na mente das personagens.
Os diálogos e atitudes de A... e Franck parecem artificiais e dissimulados, como se soubessem estar sendo vigiados. Cenas, gestos e falas se repetem qual flashes cinematográficos. Aliás, como cineasta, Robbe-Grillet usa recursos semelhantes. Basta lembrar Ano passado em Marienbad (1961), dirigido por Alain Resnais com roteiro de Robbe-Grillet.
Enfim, aos poucos o desconjuntado de fios soltos começa a fazer sentido ao leitor. Uma carta que A... escrevia passa para um bolso de Franck ...(p.60) O anônimo narrador espera A ...na casa vazia... Mas A ... não volta... Nem Franck. Ambos, porém, acabam voltando e, num ritornello, tudo recomeça ...
Os narradores de Machado e de Robbe-Grillet estão longe de terem vivido “ciumentos e felizes para sempre”. Bentinho não supera seu ciúme, se deixa envolver pelo ceticismo e desencanto, enquanto o narrador anônimo de Robbe-Grillet permanece enredado em sua sondagem obsessiva e doentia. O que aconselharia Dra. Donatella a cada um deles? ------------------ * Texto a partir de comunicação em mesas-redondas em São Paulo ( 09/11/09) e em Porto Alegre ( 13/11/09) por ocasião do lançamento do livro ...E viveram ciumentos e felizes para sempre, de Donatella Marazziti
** Trata-se de novidade relativa, Kafka, James Joyce, o teatro do absurdo já apresentavam algumas dessas características. Nathalie Sarraute, Michel Butor, Marguerite Duras, Samuel Beckett são alguns desses autores que buscavam, enfim, romper com a escritura tradicional. |
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