Feminilidades na Contemporaneidade | | Imprimir | |
Guacira Lopes Louro Parece-me impossível falar, hoje, da feminilidade, do feminino ou da mulher como se houvesse alguma essência ou uma forma singular de viver essa condição.Há muito o movimento de mulheres e as teorizações que a ele se articulam tornaram evidentes não só a pluralidade de formas de ser e de viver a feminilidade, mas também distinções e fraturas no movimento e no pensamento feministas. Somos mulheres de muitas formas e jeitos, somos mulheres de diferentes raças, idades,classes, orientações sexuais; de diferentes culturas, religiões; talvez até seja possível dizer que somos mulheres de diferentes tempos, ainda que estejamos todas vivendo numa mesma época. Essas distintas posições supõem e constroem uma diversidade de destinos, restrições, possibilidades. As formas de enfrentamento ou os modos de subordinação a essas circunstâncias certamente são múltiplos. Queria ser capaz de acenar para essa multiplicidade, mas é claro que isto é impossível.Por isso, decidi ensaiar uma espécie de mosaico que espero seja instigante e sugestivo de ser alargado. A primeria peça deste quadro vem de um programa de TV que, até alguns poucos anos atrás, era realizado pela MTV e no qual jovens mulheres e homens se encontravam e buscavam parceiros amorosos. Seu nome: Fica comigo (o programa foi objeto da tese de doutorado de Rosangela Soares, defendida em 2006, no Programa de Pós Graduação em Educação da UFRGS).
Rosangela buscou demonstrar como ali se exercita o que denominou de pedagogias amorosas/sexuais, como esse programa apresenta e institui práticas de aproximação e conquista, comportamentos e atitudes empreendidas por jovens que estão em busca de um par. Pode-se dizer que o Fica comigo se constituiu numa versão contemporânea, bem humorada e, sob certa ótica, quase paródica, dos antigos programas de namoro na TV e no rádio. Alguns críticos comentaram que tudo se parecia com uma espécie super-mercado sexual; o programa seria um exemplo ou uma amostra expressiva do caráter consumista da sociedade contemporânea, uma vez que cada jovem era instado a fazer seu marketing pessoal para conquistar o coração do querido ou da querida do dia. Por outro lado, houve quem valorizasse o fato de que se colocava em evidência, ali, algumas das novas formas de aproximação e de relacionamento que vêm sendo praticadas pelos jovens e, principalmente, que se promovia a alternância de garotos e garotas nos diferentes papéis do relacionamento amoroso (ou seja, em um determinado dia as garotas eram as pretendentes e tomavam a iniciativa da ‘cantada’, em outros elas ocupavam o lugar de quem era ‘paquerada’ ou cortejada). Poderia se dizer também que uma determinada forma de feminilidade é colocada em tela neste programa: as jovens que ali se apresentam são ou pretendem ser – todas – bonitas, ‘malhadas’, decididas, dispostas a expor, publicamente, seus desejos e suas preferências no terreno amoroso/sexual. Parecem à vontade com seus corpos e, geralmente, sugerem ou anunciam erotismo e sensualidade. São capazes de apreciar o corpo masculino e disputam umas com as outras, sem disfarce, a atenção e a preferência do querido do dia. Não têm ou não mostram pudor ou timidez para inventar fantasias ou para realizar os fetiches que, eventualmente, possam vir a agradá-lo. Enfim fazem de tudo para corresponder ao que parece ser um certo ideal de garota urbana pós-moderna.
Mas dizer isso não é dizer tudo o que acontece no programa. Essas mesmas garotas assumem-se como românticas, esperam ser conquistadas com flores ou canções de amor, descrevem-se como carinhosas, colocam a fidelidade e a sinceridade como fundamentais. Neste espaço, seu jeito de ser feminino não é apenas construído pelo que elas dizem ou fazem, mas também, é claro, por tudo o que dizem e fazem os outros na direção delas. Assim é interessante notar que os garotos as presenteiam com pijaminhas bem comportados e caixas de bombons, expressam com veemência sua intolerância a uma eventual traição, e, por vezes, mostram-se desconfortáveis com a posição supostamente passiva de cortejados. A platéia, com gritos, vaias e aplausos, aprova ou desaprova atitudes e os programadores e a apresentadora compõem um texto heterogêneo, que tanto instiga as garotas à ousadia e à inovação quanto repete e reitera fórmulas usuais do feminino. Qual deveria ser, então, o veredicto diante desse quadro? Afinal essas garotas representam a “nova” mulher do século XXI ou carregam as marcas e os vestígios do “eterno feminino”? Parece-me que pergunta está mal formulada.A contemporaneidade, melhor dito, a pós-modernidade sugere que deixemos de lado a lógica do ou isso ou aquilo e nos convida a pensar que as coisas, os sujeitos e as práticas – neste caso, os sujeitos femininos – podem ser, ao mesmo tempo, isso e aquilo. Antes de lidar com dicotomias, pensemos na pluralidade. As diferenças não são binárias, são múltiplas. A pergunta central deste programa – Fica comigo? – e o desenlace esperado – o encontro do par – podem ser sugestivos para refletirmos sobre outra aparente contradição contemporânea. Um conjunto variado de condições vem produzindo, nos últimos tempos, uma nova representação da mulher só, ou melhor, do indivíduo só. Ser uma mulher solteira, o que se constituía, até alguns anos atrás, em motivo para lástima ou para vergonha, passou a ser, agora, sinônimo de mulher independente, desimpedida, autônoma. Pode-se supor que quem vive sozinho (homem ou mulher) tenha escolhido voluntariamente essa condição e não tenha sido relegado a ela. Ser solteiro ou estar solteiro passou a ter glamour. A condição não implica, de modo algum, ausência de vida amorosa ou sexual ativa.No entanto, apesar de todo o charme que possa estar associado a essa posição, é curioso observar o quanto os programas de TV, os filmes, a mídia e os livros (muito especialmente os livros de auto-ajuda) insistem que a felicidade se encontra no par. Aqui me valho de outra tese de doutorado, desta vez defendida na Unicamp em 2005, intitulada Receitas para a conjugalidade: uma análise da literatura de auto-ajuda. Vera Lúcia Pereira Alves mostrou, nessa literatura, a ênfase nas habilidades e estratégias que alguém deve desenvolver para encontrar e manter o parceiro. Seu trabalho revelou que a literatura de autoajuda é, fundamentalmente, voltada para mulheres o que poderia nos levar a pensar que, apesar de todas as evidentes conquistas femininas em muitos terrenos, a união estável continua sendo repetida como uma tarefa ou um destino que nós, mulheres, deveríamos valorizar. No seu estudo, Vera Lúcia acentua que “a conjugalidade é a meta” e “a individualização é o meio, o instrumento com que ela opera”. Na ótica desse tipo de literatura, tão influente hoje em dia, a máxima seria: “para casar, cuide de si; para cuidar de si, case-se”. Proponho agora um corte rápido e completa mudança de cenário. E trago uma outra peça para compor o meu mosaico imaginário: a figura de Darlene, personagem vivida por Regina Casé no filme Eu, tu, eles de Andrucha Waddington, lançado no ano de 2000. A história se passa numa região isolada e árida do nordeste brasileiro, na qual uma mulher vive com três homens e vários filhos sob o mesmo teto, e foi baseada na vida de Marlene Silva Sabóia. A vida da Marlene ‘de verdade’ só podemos conhecer pelo que ela conta. Diz ela que todos os seus maridos se completavam, e que gostou mais do Zé, porque ele era bonito e forte. A história da Darlene do filme é a de uma mulher que trabalha muitíssimo, na roça eem casa, cuida dos filhos, alimenta-os e brinca com eles e consegue, de um jeito ou de outro, manter seus três homens em paz. Ela também sabe tirar prazer do seu corpo, dançando forró, ‘transando’ e engravidando. A personagem diz, num momento do filme, que não sabe o que acontece, mas quando pega barriga fica assim, mais quente. Sua sexualidade parece ser, nesta história, espaço de libertação, de gozo e também de opressão. Nossa experiência urbana nos faz rejeitar as agruras de sua casa isolada e pobre, a secura e o pó da região, o calor constante. No entanto, é preciso reconhecer que Marlene/Darlene também vive, do seu jeito, a feminilidade. Embora distante de toda a tecnologia e confortos, sem televisão para acompanhar as modas e os comportamentos, ouso dizer que sua vida também foi tocada, de algum modo, mesmo que muito sutilmente, pelas transformações contemporâneas. Não estou afirmando que a Marlene tenha ouvido falar de feminismo. No entanto, acredito que todas essas transformações culturais mais amplas e distantes devem ter, de algum modo, contribuído para produzir fissuras nas relações de gênero, mesmo naquele lugar perdido do mundo. Mas, ainda que nada disso tenha ocorrido, estou convencida de que, há alguns anos atrás, a história de Marlenenão teria sido contada como foi neste filme. Se um diretor de cinema da cidade grande, lá pelos idos de 1940 ou 1950, tivesse sabido desta história e resolvesse traduzi-la para a tela, provavelmente construiria seu filme de modo a que a figura de Darlene fosse merecedora de um castigo exemplar: mais sofrimento, uma boa dose culpa e, ao final, (quem sabe?), a morte para punir suas ousadias. Ao mosaico de feminilidades, acrescento agora aquela que é vivida por mulheres que buscam parceria amorosa com outras mulheres. O grande entretenimento nacional, as novelas da Globo, se constitui num bom exemplo dessa visibilidade. Mas em vez de explorar este filão, vou me valer de outro estudo acadêmico, a dissertação de mestrado realizada por Nádia Meinerz em 2005, no Programa de Antropologia Social da UFRGS. Entre as jovens mulheres porto-alegrenses com quem Nádia conviveu havia as que tinham se aproximado porque tinham em comum algum envolvimento político, aquelas que saiam juntas em grupo porque tinham filhos, outras ainda porque tinham uma experiência acadêmica semelhante e, ainda as que tinham a mesma atividade profissional. Eram jovens de classe e, entre elas, não havia a preocupação política de anunciarem sua condição de lésbicas, ainda que algumas tivessem participado de grupos ou de eventos de militância homossexual. Numa cultura como a nossa, em que a amizade entre mulheres se expressa com gestos de afeto mais explícitos e desembaraçados, por vezes pode parecer tênue ou ambígua a linha que separa a amizade da parceria sexual. Nos grupos que Nádia estudou, a sedução e a conquista era menos marcada pela exposição explícita dos corpos e muito apoiada na erotização das conversas e da troca de olhares. Buscavam parceiras bem cuidadas, ainda que expressassem de muitos modos suas preferências. Nem ‘caminhoneira’ nem ‘perua’, dizia a maioria. A construção do feminino, neste grupo específico de mulheres, se faz numa constante negociação entre esses extremos,afirma a pesquisadora. Para elas, a transgressão da sexualidade não implica, necessariamente, um rompimento com as fronteiras de gênero. Vou concluir meu jogo de mosaicos com uma figura mais transgressiva: uma drag queen. Nela tudo é over, exagerado, apelativo. Ela não pretende se fazer passar por uma mulher, seu objetivo é uma criação deliberadamente superlativa do feminino. Anna Paula Vencato acompanhou um grupo de drags em seu mestrado de Antropologia Social, defendido na UFSC em 2002, e nos permite chegar mais perto de suas vidas. No camarim a drag se“monta”, produzindo com cuidado a transformação de seu corpo, através de um processo minucioso cheio de técnicas e truques. Ela propositalmente exagera os traços convencionais do feminino, imita e exagera, se aproxima, legitima e, ao mesmo tempo, subverte o sujeito que copia. Ela encena uma feminilidade e,portanto, põe em destaque o que é suposto como uma “essência” feminina. Nesse processo, ela realiza uma paródia do gênero. E, para os teóricos e teóricas contemporâneos, nada mais atual do que a crítica paródica.
A drag assume, portanto, que a sua feminilidade é deliberadamente fabricada. Nela fica evidente o caráter construído do gênero. E entre as outras mulheres? Nas figuras de todas nós e também das jovens do Fica Comigo, das leitoras dos livros de auto-ajuda, das Marlene/Darlene do interior do Brasil, das garotas que buscam outras garotas, o que se passa? Seremos, todas, ‘naturalmente’ femininas? Ou fabricamos, cada uma a seu modo, com os recurso se marcas de sua cultura, de suas ‘tribos’ particulares, nossas feminilidades? Referências bibliográficas ALVES, Vera Lúcia Pereira. Receitas para a conjugalidade: uma análise da literatura de auto-ajuda. Tese de doutorado, PPG Educação Unicamp. Campinas, 2005. MEINERZ, Nádia. Entre mulheres: estudo etnográfico sobre a constituição da parceria homoerótica feminina em segmentos médios. Dissertação de mestrado, PPG Antropologia Social UFRGS, Porto Alegre, 2005. SOARES, Rosangela. Namoro MTV. Juventude e pedagogias amorosas/sexuais no Fica comigo. Tese de doutorado, PPG Educação UFRGS. Porto Alegre, 2005 VENCATTO, Ana Paula. Fervendo com as drags”: corporalidades e performances de drag queens em territórios gays da Ilha de Santa Catarina. Dissertação de mestrado, PPG Antropologia Social UFSC, Florianópolis, 2002. |