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A ÉPICA RIOGRANDENSE  E-mail
Fronteiras Culturais - Artigos

Flávio Aguiar


No Rio Grande do Sul romance e história se confundem. Esta simbiose não é estranha nem única dentro do sistema literário brasileiro, mas a intensidade com que se deu e ainda se dá no extremo sul do país é peculiar.

Antonio Candido, na Formação da literatura brasileira - momentos decisivos, expôs de modo convincente o caráter empenhado da literatura brasileira. Nos momentos de consolidação do ideal de termos uma literatura autônoma em relação a suas matrizes modelares, no século XIX, prevaleceu a idéia de que criar uma expressão literária nacional ajudava a criar o país, e afirmar a sua independência. Em 1873 Machado de Assis, em seu ensaio publicado em Nova Iorque, "Instinto de Nacionalidade" (nome que lhe foi atribuído depois), já observara que o traço marcante da literatura brasileira era seu empenho nacionalista, para o bem e para o mal.

Para nós este empenho literário pode parecer irreal, ou até supérfluo: como pode uma literatura ajudar a consolidar uma nação e um país? Mas é necessário voltarmos nossos corações e mentes para aqueles momentos em que, no século XIX, o mapa das nações modernas começava a se desenhar. Muitos países, cuja existência hoje nos parece "natural", então não existiam: a Itália, a Alemanha, a Áustria, a Hungria, a Polônia, entre eles.

Nas Américas o mapa era mais conturbado ainda: nem Argentina nem Uruguai tinham se consolidado, a partir dos escombros do Império espanhol. A Argentina era um conglomerado de províncias dissidentes e com freqüência em guerra entre elas; e o Uruguai ainda permanecia como um estado-tampão entre as pretensões de Buenos Aires e a política do Império brasileiro.

Durante décadas houve uma guerra (ou várias) pelo controle da embocadura do Rio da Prata, com a participação das potências de então: Inglaterra, França, Espanha, e de várias brigadas internacionais, que, em geral, lutavam do lado de Montevidéu e contra Buenos Aires: houve brigadas de italianos (a mais famosa), de espanhóis, de franceses e outras.

No Brasil a unidade nacional ainda não se consolidara de todo. Além das guerras de fronteira, todas na região do Prata, várias revoltas regionais punham em questão a unidade herdada do Império português. Houve revoltas importantes em Pernambuco, no Pará, na Bahia, em São Paulo; a maior delas, e de mais longa duração, foi no Rio Grande do Sul (a Guerra dos Farrapos, 1835 - 1845), e se estendeu a Santa Catarina. Algumas delas envolveram a participação de escravos, ou de ex-escravos. A última foi a Revolução Praiera, em Pernambuco, em 1848: somente a partir de seu fracasso é que se pode dizer que o poder do Segundo Reinado se consolidou.

Sem dúvida a transferência da Corte de D. João VI para o Rio de Janeiro, em 1808, teve papel fundamental no sentido de preservar a unidade territorial do futuro Império do Brasil. Mas isso por si só não garantia um sentimento nacional. Dificultava mais ainda a construção desse sentimento o fato de que o novo império brasileiro não rompera seus laços com a dinastia dos Bragança nem com a principal instituição econômica do legado colonial: a escravidão. Uma boa parte da população que vivia no território nacional não eram tão brasileiros como os demais: eram párias institucionais, os escravos.

Foi dentro deste quadro que a intelectualidade da Corte, no Rio de Janeiro, logo seguida pelos intelectuais das demais províncias, se alçou a construtora do sentimento nacional. Para tanto, em diversos matizes, esses escritores, dramaturgos, músicos, críticos, pintores, historiadores, pensadores, puseram-se, nas artes, a "escrever a história" de seu país, ajudando a forjar um passado que desse lastro e tradição às expressões culturais do presente e às perspectivas do futuro. Essa cicatriz de nascença jamais abandonou de todo a produção cultural brasileira, em suas diversas manifestações. Com o passar das gerações, ao esforço de desenhar ou redesenhar o país juntou-se o esforço de "modernizá-lo", isto é, de arranca-lo dos grilhões que parecem prende-lo a um passado maldito, como o da escravidão ou o seu legado.

Por que esse esforço repercutiu de modo tão intenso no Rio Grande do Sul? Devido às condições históricas e culturais peculiares da região. Terra de fronteira, a construção do sentimento nacional tornou-se desde logo uma questão de sobrevivência militar. Além disso as revoltas locais mobilizaram intensamente as classes dominantes da região, os estancieiros, ou na defesa de seus interesses econômicos e políticos, ou em lutas exacerbadas entre facções pelo poder local. As guerras de fronteira, por outro lado, não impediram que houvesse contatos marcantes com as regiões do Prata, graças ao que se pode dizer que o situação cultural do Rio Grande do Sul, até mesmo em termos literários, é peculiar. Como sistema literário ou cultural, a produção do Rio Grande do Sul sempre fez parte e esteve integrada ao sistema brasileiro, seguindo-lhe os mesmos influxos e influências. Quando os românticos da região quiseram criar o romance local, seus modelos iniciais foram Macedo, Alencar, e outros escritores sediados na Corte, e não escritores do Prata. Mas tematicamente, e em termos de paisagem cultural, as marcas de região eram mais próximas das platinas do que da Baía da Guanabara. Isto fez que o Rio Grande do Sul, seguindo a terminologia proposta pelo crítico uruguaio Ángel Rama, integrasse o sistema brasileiro, mas fizesse parte (até hoje) de uma "comarca pampeana", que se desdobra em duas línguas (espanhol e português) e três países, Uruguai, Argentina e o sul do Brasil.

Essa proximidade ao Prata foi deixando marcas indeléveis na cultura gaúcha. Já na época da República, um escritor como Simões Lopes Neto, autor de Contos Gauchescos, de Lendas do Sul e também do hilariante Causos do Romualdo, revela traços mais nítidos de contato com um escritor argentino como José Hernández, autor do poema Martín Fierro, que consolida a literatura argentina. Também as repercussões do Movimento Modernista no estado foram peculiares: o Modernismo gaúcho nunca abandonou de todo os traços simbolistas, o que o aproxima do modelo castelhano, em que "Modernismo" na verdade quer dizer, em termos brasileiros, "Simbolismo" e "Parnasianismo". Veja-se como exemplo a poesia do poeta gaúcho mais conhecido, e um dos mais populares no Brasil, Mário Quintana.

A expressão dessa peculiaridade histórica encontrou seu pilar de afirmação na obra de Érico Veríssimo, particularmente a trilogia O tempo e o vento, formada pelos romances O Continente, O retrato e O arquipélago, que imortalizou personagens como Ana Terra, o Capitão Rodrigo Cambará, Bibiana e outros, definindo nacionalmente uma espécie de "Pantheon" da mitologia gaúcha.

O tempo e o vento começa em meados do século XVIII, com a destruição das missões jesuíticas no noroeste do Rio Grande do Sul pelas tropas portuguesas e espanholas, e termina em 1945, nos meses subseqüentes à deposição de Getúlio Vargas e o fim do Estado Novo. Durante este tempo a narrativa evoca a formação de um clã familiar, os Terra-Cambará, e suas disputas pelo poder local com a família rival, os Amaral. De um modo geral, os Terra-Cambará alinham-se com os republicanos e os abolicionistas, embora se aproveitem também da instituição escravista, enquanto o clã Amaral alinha-se com os monarquistas. A formação da família espelha as vicissitudes históricas da região e do Brasil: as lutas de fronteira, a independência, a Guerra dos Farrapos, as lutas no Prata, a guerra do Paraguai, a proclamação da República, a Revolução Federalista (1893-1895), a Nova Revolução Federalista (1923), a Coluna Prestes (1924 -1926), que começa no Rio Grande do Sul, a Revolução de 1930, a de 32, as duas guerras mundiais, as crises econômicas, o Estado Novo (1937 - 1945). Espelha também as condições sociais da formação regional e nacional: a escravidão, as diferenças de condição, por exemplo, entre os membros do clã, poderosos e ricos, e a família Caré, pobres que habitam as terras dos Cambará, a política clientelista e outros dramas característicos.

Durante muito tempo viu-se a obra de Érico Veríssimo como consagradora de uma visão exultante da mitologia guerreira do Rio Grande do Sul, seja através da construção de um tipo masculino como o Capitão Rodrigo Cambará, corajoso, audaz, brigão, violento mas generoso, ou de um tipo feminino como sua mulher Bibiana Terra, dura, sóbria, seca, turrona, capaz de travar uma guerra doméstica sem quartel com a nora, Luzia, pela posse do casarão da família.

Na verdade toda a trilogia de Erico é construída a partir do ponto de vista de seu alter-ego, o escritor Floriano Cambará, tataraneto do Capitão Rodrigo e de Bibiana, que aparece como autor fictício da narração. Floriano - como de resto o próprio Érico - detesta a violência e tem uma visão bastante crítica dessa vocação guerreira das classes dominantes do estado. Érico/Floriano desnudam essa tendência como próxima da barbárie, embora admirem a coragem e o denodo com que se combate no estado por valores, por idéias, ou mesmo por interesses políticos ou de classe, e reconheçam a importância desse traço na formação da cultura local. Ambos, autor fictício e real, manifestam uma admiração profunda pelas mulheres, que vêem como as autênticas formadoras e guardiãs do caráter regional, através de sua firmeza (como no caso de Ana Terra, de Bibiana, de Maria Valéria), de sua vocação para o sacrifício (como no caso de Luzia, a nora de Bibiana) e mesmo de sua capacidade de desenvolver um olhar crítico em relação à vocação guerreira dos homens.

Com estes ingredientes Érico conseguiu construir uma visão abrangente de um povo cuja história foi marcada pelo ritmo das guerras e revoltas que deixaram cicatrizes indeléveis nas famílias. Essa tradição guerreira e rebelde chegou até a segunda metade do século XX: afinal, em 1961, quando da renúncia de Jânio Quadros, foi do Rio Grande do Sul, com a formação da Rede da Legalidade, que partiu a reação ao golpe de estado que queria impedir a posse legal do vice-presidente João Goulart na presidência.

Érico consagrou também um legado para as novas gerações. A preferência pelo romance histórico continua a ser uma marca regional, atestada por um autor como Luís Antonio de Assis Brasil (Um quarto de légua em quadro, que analisa a contribuição dos imigrantes açorianos no estado; A prole do Corvo, que evoca também a Guerra dos Farrapos; e mais recentemente O pintor de retratos, interessante estória sobre um fotógrafo italiano perdido em meio à Revolução Federalista de 1893). Também o atesta o romance de Letícia Wierzchkowski, A casa das sete mulheres, que conta a história da Guerra dos Farrapos do ponto de vista das mulheres - esposa, filhas, sobrinhas e outras aparentadas - da casa de Bento Gonçalves, que foi presidente da República Riograndense então proclamada. Por estas razões, pode-se dizer que a história do extremo do sul brasileiro provavelmente continuará sendo uma fonte inesgotável de ficção, não só em nível regional, mas também nacional, como atesta o sucesso de público da recente mini-série da Rede Globo baseada no romance A casa das sete mulheres.

A Guerra dos Farrapos e Anita Garibaldi

Nenhum acontecimento foi tão marcante na formação cultural do Rio Grande do Sul quanto esta guerra de dez anos (1835 - 1845) em que se misturaram interesses econômicos, disputas políticas ferozes e ideais libertários, como a República e a libertação dos escravos. Todos estes fatores, deve-se assinalar, despertaram polêmicas intensas entre os participantes do movimento.

As primeiras evocações históricas da guerra, sobretudo depois da proclamação da República, eram de apologia quase incondicional do movimento: nele teria se formado o "caráter" peculiar do gaúcho, sóbrio, valente, o "monarca das coxilhas". Depois se desenvolveu uma visão mais crítica, em que despontavam as motivações econômicas da guerra, sobretudo a taxação excessiva do charque local, que favorecia a importação do charque platino. O charque era o principal produto alimentar das populações pobres brasileiras, incluindo os escravos, e a disputa de seu mercado era muito séria. Também se ressaltavam os fatores políticos imediatos, com a insatisfação dos estancieiros com a nomeação de presidentes (como se dizia então) da província ineptos e ligados ainda aos interesses lusitanos remanescentes.

Na verdade os fatores econômicos e políticos são fundamentais para se situar a guerra num contexto adequado. Mas não se pode explicar dez anos de guerra, mais a proclamação de uma república e a formação das brigadas de cavalaria dos lanceiros negros, apenas pelo imposto sobre o charque ou uma disputa pela presidência da província. Houve sim a infiltração de ideais libertários na agenda da classe dominante local, sobretudo a partir de três tipos de personagens envolvidos na conflito. O primeiro deles era a oficialidade jovem da região, fortemente influenciada pela corrente "vermelha" (como se dizia) da maçonaria, radical, republicana e abolicionista, e também exposta aos ideais republicanos que acabaram triunfando (também com ajuda da maçonaria) no vizinho Uruguai. A segunda era a de líderes oriundos de uma incipiente classe média, numericamente pequena mas barulhenta, pelo menos no começo da guerra, como o Padre Chagas, Pedro Boticário e o escritor Caldre e Fião (que depois rompeu com os Farrapos quando passou a duvidar da veracidade de seus ideais abolicionistas). O terceiro era a presença dos italianos, que compunham uma verdadeira "Internacional Republicana" comandada por Mazzini a partir de Londres.

Como a coroa do Império Brasileiro pertencia aos Bragança, e estes eram ligados política e familiarmente aos Habsburgo, do Império Austro-Húngaro, que dominava o norte da Itália, para esses italianos lutar contra as forças imperiais na América do Sul era também lutar contra aliados de seus inimigos europeus. Destacaram-se, entre os muitos italianos envolvidos com a causa dos Farrapos, o Conde Tito Lívio Zambeccari, Luigi Rossetti, intelectual brilhante que chegou a ser redator de "O Povo", diário oficial da república, e Giuseppe Garibaldi, cuja fama e aura correriam o mundo.

Parte dessa fama e dessa aura deveu-se a seu envolvimento com Anita, mulher que encontrou em Laguna, Santa Catarina, quando os republicanos a tomaram, em busca de um porto. Anita casou-se com Garibaldi e o acompanhou pelo resto de sua vida, até morrer nas lutas pela unificação da Itália, em 1849, quando teria cerca de vinte e oito anos de idade. Garibaldi e Anita, cognominados "os heróis de dois mundos", deram a aura romântica necessária à constituição de uma legenda moderna, como a da Guerra dos Farrapos.

Sem dúvida o sucesso que a mini-série da Rede Globo obteve junto ao público se deveu também à história dessa paixão desabrida que uniu os dois em meio a uma guerra civil. Também penso que o sucesso se deve (isso pode parecer paradoxal) ao desconhecimento por parte da maior parte do público (fora do Rio Grande do Sul) dos detalhes ou mesmo das generalidades em torno dessa guerra. A visão de nossa história com freqüência se dividiu entre a exaltação oca de heróis duvidosos, ou a ironia deslavada em relação a esses mesmos heróis. É "natural" que neste contexto o público seja atraído pela visão de líderes republicanos autênticos e personagens apaixonados e apaixonantes, como Garibaldi, Rossetti, Anita e outros. É necessário, creio, manter um cuidado nesta admiração: a minissérie, sobretudo, na adaptação do romance, não tratou propriamente da "história" do Rio Grande do Sul, mas sim de sua "mitologia". E nisto não vai crítica: estamos diante de uma obra de ficção, não de um tratado histórico.

Flávio Aguiar é Professor de Literatura na Universidade de São Paulo.