O Tríplice Cyro Martins |
Fortuna Crítica - Artigos |
Moacyr Scliar - Médico e escritor Fui leitor do doutor Cyro Martins. Fui paciente do doutor Cyro Martins. Fui amigo do doutor Cyro Martins. Três situações que alargaram minha visão como pessoa, três situações que deixaram saudade. Dou-me conta agora, evocando essa figura que a tantos marcou, de como, em Cyro Martins (ou no doutor Cyro, como quase todos o chamavam) as três condições misturavam-se de forma íntima. Cyro, escritor, era também o Cyro amigo e o Cyro terapeuta. Sua literatura, sempre realista e por vezes abordando uma sombria conjuntura, era, no entanto, amável. Amável ele era também com as pessoas que conhecia. E amável era como terapeuta. O que merece uma elaboração. Cyro Martins foi um dos pioneiros da psicanálise no Rio Grande do Sul ( vale dizer no Brasil), numa época em que a prática psicanalítica era eminentemente freudiana, ortodoxamente freudiana. A neutralidade do terapeuta era uma das exigências mais rigorosas desta postura. Durante as sessões, os analistas mantinham-se distantes, imperturbáveis. Meu tratamento com o doutor Cyro era em grupo (mas ele atendia também pacientes individuais). De início a psicanálise não contemplara esta possibilidade, terapia em grupo era coisa que Freud não fazia. Mas as investigações da dinâmica de grupo e, possivelmente, a necessidade de democratizar o tratamento - muito caro e, portanto, elitista - fizeram-no desenvolver esta possibilidade que, imagino, agradava ao passado esquerdista do doutor Cyro. O tratamento em grupo estava longe de ser uma conversa amena. Conflitos estalavam, às vezes de forma súbita. Foi durante o tratamento, por exemplo, que descobri - para meu horror - uma tendência racista que julgava incompatível com a minha ascendência judaica. Mas era assim. As surpresas se sucediam, raramente agradáveis - mas sempre reveladoras. Lembro o doutor Cyro nessas sessões. E lembro-o amável. Nada fazia desaparecer o discreto, terno sorriso que exibia sempre. Era uma perfeita figura paterna, ele. E era mais que um médico: era um sábio, alguém que conhecia a vida não por ter lido a respeito, não por ter sido treinado para enfrentar problemas da existência alheia, mas por ter elaborado dentro de si mesmo profundas experiências vitais. Ás vezes, em plena sessão, contava uma historinha qualquer. Lembro uma delas, algo sobre um homem que, perturbado, o perseguia nas ruas, gritando em altos brados. E o senhor o que fez, perguntamos. Ele sorriu: - Eu olhava para o pessoal e fazia sinal de que o cara era maluco. Pode ter coisa mais heterodoxa? Acho que não. Mas o sábio doutor Cyro sabia dosar estas intervenções de modo a não comprometer o resultado do tratamento - que, ao menos naquele grupo e ao menos do meu ponto de vista -, foi muito bom. E, ao recordar o incidente, me dou conta de que evidenciava as três condições a que me referi antes. Ali estava o Cyro terapeuta, ali estava o Cyro amigo, e ali estava também o Cyro escritor - pois, o que é o escritor, senão um contador de histórias? E o que é o terapeuta, senão alguém que usa as histórias contadas pelo paciente como fio condutor para ajudar este mesmo paciente a encontrar sua verdade interior? Há muitas afinidades entre psicanálise e literatura. Freud, sempre citado ( os psicanalistas não conseguem redigir um texto sem o santo nome) , era um ávido leitor e um bom escritor. Não poucas vezes ele foi buscar na literatura situações para ilustrar suas idéias. A própria investigação psicanalítica tem muito a ver com o processo de investigação literária; a associação de idéias desempenha aí um papel fundamental. Finalmente, como a literatura, a psicanálise valoriza o uso da palavra. Em nenhuma outra forma de tratamento esta desempenha um papel tão fundamental. Um único termo ( ou a distorção do mesmo, no caso do lapso) pode ser o ponto de partida para a elaboração que culminará com a descoberta de conflitos ocultos. Tudo isso, todo esse trabalho, Cyro fazia com satisfação e prazer. Se o general no labirinto de que fala Garcia Marquez era uma imagem de sofrimento, Cyro Martins percorria os labirintos da neurose, e da criação, e do convívio humano com a desenvoltura com que o víamos, muitas vezes, passear à beira-mar na praia de Atlântida. Uma imagem que ficará. Uma lembrança que ficará. In O Gaúcho no Divã |
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