CYRO MARTINS, MESTRE NA SIMPLICIDADE | | Imprimir | |
ENTREVISTA O escritor Cyro Martins tinha 87 anos de idade quando ficou doente. "Estava inteiro, cabeça a mil", lembra Maria Helena, que cuidou de, a partir daí, ficar com ele praticamente o tempo todo. Três anos passados da morte dele, a filha pesa um fato: "tive a sorte de poder valorizar meu pai em vida". Meu pai teve sorte porque seu trabalho foi reconhecido enquanto vivia e isso não é muito comum. Mesmo que sua obra literária tenha ficado mais restrita ao Rio Grande do Sul, sua atuação como médico psicanalista e seus ensaios na área foram além- fronteiras. Isso lhe dava satisfação. Ele sempre soube apreciar as homenagens. Era vaidoso, sem ser exibido. Acho grande coisa na vida de uma pessoa saber curtir as homenagens que lhe prestam sem ficar pretensiosa. Quem conviveu com meu pai sabe que ele era de uma simplicidade, às vezes, surpreendente. Essa a grande qualidade dele que eu invejava. Talvez uma das mais invejáveis, porque ser simples e sábio são poucos que conseguem. Isso ele passava para a gente no cotidiano, na maneira de se relacionar com as pessoas, desde as mais humildes até as mais importantes, as ditas autoridades, com as quais tinha a mesma atitude. MW - E não estabelecia uma diferença ... MH - Não, ele era atencioso sempre. Uma das coisas que eu permanentemente lembro de meu pai era a sua acolhida às pessoas, fossem quem fossem. Mesmo com quem lhe fosse totalmente desconhecido. Ele conversava com a maior naturalidade, dando-lhes atenção. MW - Ele era generoso ... MH - Era de uma generosidade espontânea, não fabricada, muito diferente da que se costuma ver em políticos ou em pessoas públicas. Além disso, ele tinha disponibilidade para tudo. Por exemplo: chamavam o pai para Cacimbinhas. Lá ia ele fazer uma fala na escolinha, pra professorinhas. Há poucos dias recebi uma carta comovente. É de uma professora de uma cidade do interior, escrita com caligrafia perfeita. Ela contava que tinha sabido de nosso projeto de organização do acervo de Cyro Martins e acreditava que talvez pudesse colaborar mandando-me em xerox uma cartinha que o pai havia escrito para ela depois de visitar a cidade onde atendeu os alunos dela. A carta do pai é extremamente simples, dizendo como tinha sido boa aquela visita, como ela tinha sido atenciosa e seus alunos atentos. Ela me contou que guardava essa carta como uma relíquia. MW - Há quanto tempo foi isso? MH - Isso não faz muito tempo. Acho que é do final da década de 80. A atenção, a humanidade que brotava dele em todos os gestos com as pessoas, ele a manteve até o final. Também com seus pacientes. Atendeu-os até o momento em que não podia mais se locomover. Foi difícil ... MW - Continua sendo difícil ... MH - Difícil. Há pessoas que dizem que criar o Centro de Estudos de Literatura e Psicanálise Cyro Martins e realizar o projeto "Cyro Martins 90 Anos" é muito importante porque tudo isso me faz elaborar a perda e assim acaba o luto. Isso é uma ilusão, uma falácia. A perda do meu pai é absolutamente irreparável. O que estou fazendo tem nada a ver com isso. A criação do Centro de Estudos, os eventos, eles acontecem porque estou convicta de que a obra dele tem um valor a ser preservado. E sua literatura tem aspectos que precisam ser ressaltados: se liga a suas vivências da terra e a seu conhecimento da alma humana, integrando-os no texto, na ficção e nos ensaios, favorecendo possibilidades de outras criações e reflexões. MW - Quais são esses aspectos? MH - Para ficar na ficção: se dá ênfase muito grande à temática do "gaúcho a pé". Acho que não tem dúvida. Mas há algumas coisas na obra literária de meu pai que são importantes e ainda pouco se valoriza. Por exemplo: a estrutura narrativa. Ela tem uma maleabilidade que a faz parecer muito simples, como ele era. Diante dessa simplicidade corre-se o risco de ignorar o que significou a conquista dela para o escritor. Ligado a isso está também o trabalho dele com a linguagem, que acho excepcional. É uma coisa que pouquíssimos críticos salientaram. O processo se dá através de um filtro pelo qual ele vai elaborando o texto de modo a dar a entender que está escrevendo como quem fala. Examinando a estrutura de frase, se percebe como consegue isso. Por exemplo: a pontuação foge do usual. Usa a pontuação como a respiração de quem fala. Isso é muito difícil de fazer sem perturbar o texto, sem confundir o leitor. MW - A respiração é muito associada a sentimento .. MH - Exatamente. Outra coisa que acho importante é o uso de expressões que, no comum do linguajar, não só na fala cotidiana, mas mesmo na literatura chamada gauchesca, são expressões que sumiram. Não existem mais. Então, ele consegue resgatá-las, mas as integra à sua literatura, atualizando-as. Transforma essas expressões esquecidas em algo vivo, numa composição coerente. Há coerência interna: de linguagem, de estrutura narrativa, de temática, de caracterização de personagens. Trabalho com literatura e sei quanto isso é difícil. No texto do pai, isso até parece fácil. Nos manuscritos dele não há praticamente correções. Ele tinha um processo de elaboração especial precedendo a escrita. Ficava matutando a respeito do que ia escrever. Quando chegava a verbalizar, dizendo que "estou com vontade, estou pensando", já estava com o processo maturado. Nós conversávamos sobre isso. Especialmente em Atlântida, onde a gente convivia mais porque estávamos em férias e ele tinha todo tempo para se dedicar à literatura, para escrever, para ler. Fazíamos longas caminhadas pela praia, trocando idéias sobre o que ele estava escrevendo. O fantástico é que me contava sobre Fulano e Beltrano - personagens - como se já tivesse escrito sobre eles, mas ainda não tinha. Estava antecipando a escrita. Depois lia pra gente o que tinha escrito e era impressionante: quase idêntico ao que tinha me falado. Então, essa maturação, esse processo de elaboração interna que ele desenvolvia, precedendo a criação textual propriamente dita, era uma coisa especial. Dizendo tudo isso não quero elevar meu pai aos píncaros da glória, mas quero mostrar aspectos do processo de criação dele que são pouco conhecidos. MW - Ele se dava conta de que fazia um processo de criação diferenciado? Chegou a comentar isso alguma vez? MH - Como te disse, o pai gostava de ser homenageado, era vaidoso - mas nunca se supervalorizou. Ela sabia do valor que tinha no seu trabalho. Mas tinha uma modéstia invejável. Nos últimos 30 anos, quando amadureci mais, tornei-me sua primeira leitora. Ele me dava para ler os textos com uma modéstia de quem está escrevendo pela primeira vez. Eu lia e tinha muita liberdade para dizer:" pai, acho que não ficou legal essa personagem" ou "essa situação aqui, não sei ... estou achando esquisita". Ele me ouvia com o máximo de atenção. MW - E aceitava as opiniões? MH - Só aceitava quando se convencia de que eu tinha razão. Nunca foi submisso diante das críticas que recebia de mim. Em tudo, até na pontuação, que é muito especial. Eu dizia: "Pai, tem tanta vírgula ..." Ele deixava pra lá. Aquilo era opção dele. Quando eu apontava uma repetição da qual ele não tinha se dado conta, imediatamente agradecia: "Obrigado, muito obrigado". Ele agradecia por um copo de água, por uma observação dessas, um gesto. Era grato à vida. MW - Você dizia que a pontuação dele obedecia à respiração, o que remete a uma associação com afetos. A partir daí seria possível se dizer que ele escrevia com afetividade, envolvido com a história que criava? MH - Eu acho que sim. A literatura do pai tem muito a ver com a força de seus laços afetivos, familiares, da sua infância, adolescência. Conseguiu manter isso vivo até o final de sua vida. Mesmo tendo saído de Quaraí com menos de 30 anos, de forma definitiva, ele conservou as lembranças com tal intensidade que não importava a distância no tempo e no espaço. MW - Nunca tentou se livrar delas ? MH - Não, nunca. Pelo contrário. Uma vez perguntado por que havia transformado o pai, Bilo, em personagem, ele respondeu que acreditava ter sido para "conservá-lo comigo mais tempo" ( meu avô morreu quando o pai recém se formara em Medicina). Isso dá uma idéia das motivações mais profundas da literatura dele. Tudo a ver com sentimentos, embora ele não fosse homem de grandes demonstrações afetivas. Era discretíssimo e se manifestava com pequenos gestos, um olhar, um sorriso, uma palavra que - vou te dizer - vinham lá de dentro. MW - Como era o humor dele? Ele brincava? MH - Tinha muito senso de humor. Especial para quebrar um gelo, para quebrar um formalismo. Nunca para fazer uma galhofa. Era sempre uma tirada espirituosa. Quando via alguém beirando uma depressão, ele já tratava de achar alguma coisa para tirar do sério, mas não era um piadista. Tinha tiradas. Coisa de momento. Ele aparava. Eu dizia: "Pai, tu aparas uma tristeza". MW - Nada a ver com essa coisa tão modernosa do pensamento positivo ... MH - Não, nesse sentido não, mas no de que essa capacidade é fruto de uma conquista: não é qualquer um que consegue valorizar as coisas realmente significativas, que muitas vezes são quase imperceptíveis, pela simplicidade, pela obviedade delas. Segmentos de Entrevista concedida à jornalista Maria Wagner, |