Masculino, Feminino e quase Neutro |
Fortuna Crítica - Artigos |
Léa Masina*
Em 1982, ano da primeira edição de O Príncipe da Vila, a obra ficcional de Cyro Martins já se consolidara como um monumento à desmitificação do gaúcho literário, cuja idealização fora desenvolvida pelos primeiros regionalistas, sob o influxo da gauchesca platina. O Príncipe da Vila não se alinhava, pois, aos textos antecedentes, na pretensão de opor-se à ótica tradicional, através da visada sociológica e política que permitiu à crítica identificar, na obra de Cyro, a trilogia do gaúcho a pé. Não obstante, os elementos literários que identificam o regionalismo de 30, de que Cyro é um dos principais representantes, articulam-se, nesse livro, de modo renovador. Já decorridos mais de 15 anos de sua publicação, ele pode ser lido hoje como a exploração literária de um avesso, de uma dobra importante da gauchesca, determinada substancialmente pela presença da mulher.
Sem laivos panfletários e sem ranço documental, o texto incorpora e contraria a tradição. Primeiramente, situando a mulher como agente transformador do destino dos homens; depois, por reescrever o mito de Édipo, uma vez que os possíveis pais de Brandino - e não ele próprio - ocupam a primeira metade do livro, preocupados em definir a sua origem. Essa paternidade obscura que passa pelos batentes da janela de Luzia, sua mãe, escapa também a ela. A verdade só pertence ao acaso.
A galeria de personagens que se oferece ao leitor deixa ler, portanto, as regras e as leis do universo das mulheres, limitado e resistente à ótica masculina. Profundo conhecedor das almas, o romancista faz-se neutro para apreender suas vozes, traduzindo-as através da fala interior e da reminiscência. É Luzia quem primeiro assinala a diferença ao atribuir seu fascínio, que atrai os homens, ao fato de manter-se inteira após seus inúmeros partos. Já velha, enquanto maneja o bilro, lembra o quanto fora fácil iludir uma vila inteira. Já Teresa, a noiva e depois mulher de Brandino, era uma ficada, uma trintona, de carreira feita para solteirona. Teresa casa para fugir da sina do abandono. Porém, no enterro de Brandino, seus suspiros eram, antes, sutis manifestações de alívio. Além dessas mulheres-chaves, da bugra Leonça, de Pitoca, a casamenteira, de Joaninha, a costureira, há ainda as parteiras, as fofoqueiras tecendo suas tramas, as castelhanas dos cabarés, e a cozinheira Guilhermina, cujo olfato se assemelhava ao faro de cachorro. Todas elas saltitam à volta de Brandino para mostrar-lhe o reverso da vida e desvendar-lhe sua própria identidade. Será essa afinidade ao sensual e ao sensível, colhido ao universo das mulheres, que faz de Brandino um príncipe, um empelicado, fadado ao um destino estranho. A presença de Príncipe, o galo-músico, que ocupa a primeira metade do livro para transformar-se num dos causos que Brandino, já velho, irá contar de porta em porta, vagando pelas estâncias, espelha o percurso da personagem. A escolha do galo como o duplo, e não o cavalo ou o cachorro, subverte a ótica tradicional por preferir o cotidiano das galinhas à visão heróica dos animais que, tradicionalmente, sempre participaram da glória heróica do gaúcho.
Se, na tragédia de Sófocles, Édipo cega seus olhos em busca da lucidez, Brandino inverte esse roteiro básico: seguindo, com apreensão, o destino traçado pelos outros, casa com Teresa e retira-se para a campanha. Mas a campanha literária não é mais o rincão consagrado por Martín Fierro e seus continuadores: é o lugar da solidão e da melancolia, que Brandino administra como pode. Sobrevive. A inquietude espiritual, em tudo avessa à praticidade e ao imediatismo da campanha, o faz escutar as batidas insistentes do fantasma à sua janela. Brandino é o pícaro e o anti-herói até na morte. Ao matar-se com o seu primeiro tiro, destinado ao fantasma que o assombra, permite que se acompanhe o desespero de uma alma doente. A competência de Cyro Martins, ao compor O Príncipe da Vila, extrapola na linguagem o conhecimento médico que aurira no exercício da psiquiatria e da psicanálise: com seus insights, Cyro seleciona e costura fragmentos de vida. No entanto, tal densidade trágica não exclui o humor e a picardia tão gaúchos. O uso de expressões idiomáticas locais e a escolha de certos molejos sintáticos característicos da campanha fronteira contribuem para que se leia O Príncipe da Vila como um dos momentos mais felizes e paradigmáticos da força criadora de Cyro Martins. --------------- * Léa Masina é crítica literária e professora, membro do Conselho Consultivo e Editorial do CELPCYRO Texto originariamente publicado como : O Gaúcho no Divã - Segundo Caderno Especial, Zero Hora.
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