Porteira fechada: 65 anos depois |
Fortuna Crítica - Artigos |
Carlos Appel *
Foi em meio à II Guerra Mundial que saiu a primeira edição de Porteira fechada de Cyro Martins. Ainda não se falava no que mais tarde viria a ser a trilogia do gaúcho a pé, completada anos após com a publicação de Estrada nova, em 1954. Os sinais de crise e de ataraxia no processo de produção da campanha gaúcha transparecia já no título de Porteira fechada. A ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas refletia, no plano sociopolítico e econômico nacional, o conflito das potências europeias, que se dizimavam, e a emergência dos Estados Unidos como potência mundial. Os ecos dessa crise chegou à campanha gaúcha e ajudaram a desmoronar de vez as estruturas tradicionais da economia do campo, o chamado capitalismo agropastoril, que já apresentava sérias fissuras em seu tecido socioeconômico desde o final da I Guerra Mundial. Sem rumo, publicado nesse entreato (1937), traz à tona os motivos da expulsão da mão de obra ociosa das estâncias para os caminhos e periferias das cidades. Chiru tornou-se símbolo desse êxodo rural.
Em Porteira Fechada a crise chega ao seu auge. Não só os peões são atingidos pela convulsão socioeconômica,mas também os pequenos e grandes proprietários de terras.
Nem todos queriam ou podiam abandonar, de uma hora para outra, seus haveres e restritas possibilidades de sobrevivência. A formação familiar tinha sólidas e antigas relações afincadas no mundo rural. Foi essa circunstância que João Guedes tentou enfrentar ao arrendar terras para produzir e criar gado. Esse processo de subsistência, no entanto, se mostrou inviável. O desmoronamento dos valores familiares e, por extensão, dos princípios pessoais, afetava qualquer atitude ou ação. João Guedes e sua família corporificam essa pequena tragédia. A luta se mostrou vã, inglória e sem perspectiva. Porteira Fechada simboliza este impasse no plano pessoal, familiar e social. A estrutura do mundo tradicional fora atingida no seu âmago e o êxodo rural seria sua interminável consequência.
Cyro Martins vivenciou, como menino, depois adolescente e, enfim, como médico de campanha, essa realidade. Conhecia os seus meandros, pressentiu e somatizou, através da literatura, seus avatares e soube fazer o registro e a interpretação dessa clivagem da transição do campo para a cidade. Soube buscar, no entanto e paradoxalmente, em meio à miséria social, resquícios de humanidade em seus personagens. Em meio à dureza da vida, persistia neles a memória de bons tempos, de bons e saudáveis hábitos, das pequenas satisfações e a teimosa sofreguidão de viver.
Na base da derrocada desse sistema está a gênese do gaúcho a pé, do gaúcho pobre, hoje conhecido como sem-terra, sem-teto. Foi o que entendeu o historiador Décio Freitas logo após a leitura de Porteira Fechada, nos idos de 1944, num artigo publicado no Diário de Notícias de Porto Alegre. Soube avaliar a importância da obra de Cyro Martins, e rastreou a premonição do autor quanto às consequências futuras da crise campesina.
Agora, um depoimento pessoal: quando conheci Cyro Martins, já havia lido toda a sua obra. E sempre me chamou a atenção a solidez estrutural de Porteira Fechada, com uma parábola que se desenvolve de modo inexorável; e há um profundo pathos que percorre todo o subsolo da obra. Um detalhe revelador: ao se propor reeditar e revisar toda a sua obra, o que fez de modo paciente e com persistência inusual, Cyro Martins me perguntou, entre irônico e matreiro, a respeito das mudanças a serem feitas em Porteira Fechada. Pois ele já havia decidido: corrigiu vírgulas e erros tipográficos, apenas. Porteira Fechada já nasceu obra-prima em todos os sentidos. Continua, a pleno, sua venturosa e sólida trajetória, após 65 anos de vida.
Porto Alegre, 15 de outubro de 2009. * Carlos Appel, Professor e crítico literário. Diretor da Ed. Movimento. |
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