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obra completa Sobre Cyro Martins Estante do autor



O Fantasma do Pé Gigante * | Imprimir |  E-mail

Cyro Martins


Geralmente o tio Brandino não contava o seu grande causo nas primeiras noites. Uma noite contava-o lá dentro, em família, e três ou quatro dias depois o repetia no galpão para os peões. Eu não perdia nenhuma das duas sessões. Lá dentro, como havia senhoras e moças no auditório, ele castigava mais a prima do amor infeliz. No galpão, para a peonada, bordeava os toques campeiros, os arrojos.


Faz um tempão que este causo me persegue. Me persegue e me desafia. Primeiro, quando era guri, eu me perguntava compenetradamente se aquilo seria mesmo verdade. Talvez, porque as pessoas grandes, quando a conversa era em família, lá dentro, ouviam-no quietas, com extrema atenção. No galpão, a cena não era lá muito diferente. A peonada, abancada em cepos de cortiça ao redor do fogo e mateando, seguia as peripécias do causo sem pestanejar, as caras coradas pelos reflexos das labaredas, o que lhes dava um aspecto puxando para o mau presságio. E geralmente isso acontecia no inverno, porque o tio Brandino costumava aparecer lá por casa, para passar uns dias, no finzinho do veranico de maio. Ele morava longe, a muitas léguas de distância. Mas nem parecia. Chegava sempre folheiro. Ele e o cavalo. As botas bem lustradas. O lenço branco do pescoço impecável. E por baixo, colarinho engomado e gravata. Chapéu de abas médias, tendentes a curtas. Pouca barba, face rosada. Casaco e colete, a corrente de ouro do relógio atravessando o estômago. Os arreios sempre novinhos. Nada que era dele envelhecia. O pala de seda, um luxo. O cabo e a baínha da faca de cintura, de prata e ouro. O revólver, também, reluzente.

Mas a gente não fazia grande festa quando o tio Brandino chegava. E não sei bem porquê. Não sei? Ora, dormindo na mira, talvez descubra. Vejamos aos poucos. Sua presença agradava? Agradava. A começar por ser uma presença limpa. E delicada. Adorava brincar com as crianças. E, curioso, não lhe faltava assunto com os grandes. Todos gostavam de ouví-lo. Macio, oportuno.

Jamais ninguém escutou de sua boca um palavrão de insulto. Sua idade? Durante os pelo menos vinte anos que duraram as suas visitas periódicas depois que se mudou para São Gabriel, nunca soube se ele tinha cinquenta, sessenta ou setenta anos. Não mudava nunca. Os anos deslizavam por ele sem fazer mossa. E o Brandino como está? Sempre liso. E era a pura verdade.


Sua conversa derivava dum assunto pra outro sem tropeços. Seu tom era brando como seu nome. A pia batismal traçou-lhe a sina da brandura. De língua solta, sem ser jamais destrambelhada, seus causos eram muitos e variados. Causos que se passavam na campanha, mas que não eram necessariamente de campanha, isto é, não eram campeiros. Bem se vê, pela sua indumentária, que suas estórias não podiam ser gauchescas. Como disse, eram muitas e variadas, embora todas tivessem uma pauta comum, o humorismo. Minto. Menos uma, a principal, que era, para assim dizer, a sua obra prima. Esse causo era sério, mesmo. Até nem parecia um causo. A gente guri ouvia-o quase se mijando de medo, mas ouvia até ao fim. E olhe, os grandes também ficavam imóveis, encolhidos, mudos, sem pestanejar. O tio Brandino repetia essa história todas as vezes que aparecia por lá, uma vez por ano. Repetia-se com a maior sem-cerimônia, porque essa era... bem, já dei a entender, a sua história oficial. E sempre tinha algo novo a acrescentar à versão do ano anterior. Um causo, sim! Mas pela maneira como ele contava, aquilo não podia ser uma simples invenção. Os fatos tinham acontecido, de verdade.

Geralmente o tio Brandino não contava o seu grande causo nas primeiras noites. Era só lá pelo quinto ou sexto serão que ele, solicitado, às vezes togado, puxava o seu causo trafegueado de muitas mudanças, como um músico ambulante empunha o seu instrumento, a pedido, numa toda festiva. Uma noite contava-o lá dentro, em família, e três ou quatro dias depois o repetia no galpão para os peões. Eu não perdia nenhuma das duas sessões. Lá dento, como havia senhoras e moças no auditório, ele castigava mais a prima do amor infeliz, emplumachada de antanho, entremeada de reminiscências, adoçada de suposições generosas. No galpão, para a peonada, bordoneava os toques campeiros, os arrojos, sem descer a façanhas, que a tanto a sua pulcritude não permitia.

Isto acontecia depois da janta. E não em seguida, naturalmente. Primeiro meu pai contava alguns causos de carreiradas, todos acontecidos, sem dúvida nenhuma. A gente vibrava com o atropelo das canchas. E como meu pai sabia heroizar um cavalo! Amainado, porém, o rebuliço da gentama que agitava a planura com outro causo mais sereno, de tropeada, por exemplo, ou de andante, tocava a vez do tio Brandino. Ele começava mansinho, aliás permanecia todo o tempo mansinho, essa era a sua característica fundamental. Contava histórias engraçadas, em geral de ladrão de cavalo, de ladrão logrado. Mas contou numa ocasião uma duma lavadeira e dum capataz de estância muito espirituosa e picante, tudo na moita, no disfarce. Isso decerto porque nessa noite não tinha moças na sala, tinha só senhoras, cavalheiros e crianças. Mas, ora, eu, guri de campanha, que desde que me conheci por gente foi vendo os animais se cobrindo, entendi tudo.

Afinal, geralmente pela hora da pipoca, lá pelas dez e pico, alguém mais sôfrego provocava diretamente o tio Brandino.

- E daí, as batidas?

Tio Brandino se punha cabisbaixo, olhava de soslaio para o curioso, como quem exclama: Barbaridade, nem me fale nisso!

Ele assumia um ar que hoje direi de sonâmbulo. A gente adivinhava cães a latir na noite alta, relinchos de cavalos, gritos desesperados de quero-queros, estouro da boiada mansa dos carreteiros que por má sorte estivessem de pouso ali por perto. Por perto, bem entendido, da morada dele, tio Brandino, que ficava a muitas léguas da nossa casa.

Caía um silêncio na roda. Todo mundo já sabia de cor e salteado do que se tratava, mas todos ansiavam pela chegada do dia e da hora da grande reprise.

Lá estava o tio Brandino, Vejo-o ainda hoje muito bem. Olhar cismático e a mão esquerda descansando o pratinho de pipocas num aparador. Sim, porque aquela história não comportava acompanhantes. Era ela sozinha ou então não tinha história.


O causo era curto, mas assustava horrores. E como o tio Brandino se deliciava com o medo dos ouvintes, principalmente das mulheres e das crianças, e também dalguns barbados, valha a verdade, embora de dia até fossem metidos a valentes. O mais impressionante era o fato de não se tratar duma história de dantes, dessas da gente curtir o outrora. Não, era de hoje. Daquele hoje de então. Bastava que alguém pousasse na casa do tio Brandino que alguém pousasse na casa do tio Brandino para, chegada a meia-noite, de repente, se ver envolvido no causo. Bem, eu conto tal qual ele contava. Não juro. Isso não. Mas isto é de agora, quando guri jurava.

Duvidam? De mim ou do tio Brandino? Pois lá na Serra do Caverá, pra onde ele se mudara quando teria uns trinta e poucos anos, já pai de família, se passava um fenômeno inexplicável todas as noites. Precisamente entre meia-noite e duas da madrugada, nem antes nem depois. E só após a casa silenciar de todo, com todas as luzes apagadas. Se por acaso alguém acendia uma vela, o fenômeno não se dava. Às vezes levavam dias dormindo com uma vela acesa. Nenhuma anormalidade. Mas bastava escurecer a casa para que, chegada a meia-noite, de repente se ouvirem umas batidas tremendas na janela do quarto do casal. Era de admirar que as janelas não viessem abaixo, porque as batidas tinham tal violência que retumbava várzea afora, acordando os ecos do descampado. Se havia carreteiros acampados nas imediações, na certa que os bois se desamarravam e disparavam. Tio Brandino, com o correr do tempo e a repetição da cena, foi se familiarizando com a sua assombração. Ele e os seus. Nos primeiros tempos foi um horror. Principalmente porque era só ele a ouvir os tais estrondos, dando lugar a que desconfiassem, os familiares e os vizinhos, que andava meio boleado da cabeça. Assim, foi com certo alívio que uma noite ele notou a mulher, pelo que dizia apenas, porque tudo isso se passava no escuro, com um jeito estranho. Concluiu: já está ouvindo. E poucos dias depois começaram os filhos a sentir o estrondo das batidas.

No forte das batidas, o Tio Brandino abria as folhas da janela subitamente e enfiava o revólver empunhado para o lado de fora. Espichava os olhos e apurava o ouvido. A noite estava sereninha. Grilos. A sombra das frondagens dos cinamomos, se havia lua, era nítida no chão. Quase que aquela imobilidade e aquele silêncio assustavam mais que as batidas. Bastava, porém, fechar a janela e deixar a casa no escuro para que tudo recomeçasse.

Um dia Tio Brandino resolveu fazer uma experiência. Peneirou areia e pôs contra a parede, embaixo da janela. No outro dia amanheceram umas plantas enormes, bem marcadas na areia fina. Agora, isso sim, nem a mulher nem os filhos nunca conseguiram ver.

- Mas está aqui, gente de Deus! Vocês não têm olhos?

O caso corria mundo naquela campanha. Os vizinhos começaram a se afastar do tio Brandino e das pessoas da sua família. E deram graças a Deus quando principiou a se espalhar, de boca em boca, a notícia dos seus planos de mudança. Já ninguém chegava lá. Procuravam até passar o mais longe possível. Esse isolamento durou uma meia dúzia de anos.

Quando se mudaram para um rincão bem distante, talvez a umas dez léguas dali, nas primeiras noites ainda bateram. Mas nessa altura, o tio Brandino não tinha mais paciência para aturar semelhante intromissão na sua vida. Ficava indignado e passou a dizer que numa noite qualquer daquelas iria dar um tiro.

- Fala, em vez de bater, alma penada!

Nenhuma resposta. Entretanto, quando ele nos contava a história, não tinha acanhamento algum de afirmar que era a alma dum apaixonado por uma moça da família que morava ali anteriormente. Uma história de amor infeliz. Namoro contrariado. Desses que acabam morrendo os dois. Ambos enforcados.

Nesse ponto, o tio Brandino aliviava a prima quando contava o causo lá dentro, por causa das mulheres. Algumas se ruborizavam, não tanto pelos que ouviam, mas pelo que o contador deixava transparecer e pelo que elas espichavam na imaginação. Ah, os serões de campanha em junho, com mil desejos a refulgir, como as brasas do fogareiro ali no canto.

No galpão, sim, para a indiada xucra, ele lavava a égua, carregando nas tintas da putaria. É que, com o tempo e de tanto repeti-la, acabou impessoalizando a sua história, que por sua vez passou a ter duas versões, a familiar e a galponeira.

Não direi que a presença do tio Brandino impusesse respeito. Não. Inspirava paz. Uma vez dois rapazes brigaram lá em casa. Briga feia. Por um tantito assim não se destriparam. Os dois de adaga. O Ramão, que era peão campeiro e também carroceava, e o Adroaldo, moço vindo do Alegrete, caixeiro de balcão. Meu pai estava de cama, com uma gripe muito forte. Pois o caixeiro e o peão se estranharam, nunca soube bem porquê, creio mesmo que mais por desconfianças mútuas que por qualquer pisca de realidade. E depois, a ausência do patrão... Pois o Romão e o Adroaldo já iam quase se esfaqueando quando o tio Brandino apareceu.

-  O que é isso, rapazes?

Estas simples palavras tiveram o efeito fulminante dum esconjuro. Ambos esbarraram frente a frente, baixaram as adagas e se retiraram envergonhados. Incrível.

Ao cabo duns dez ou quinze dias, repassado todo o repertório de causos, principalmente o daquela assombração nunca vista igual, o tio Brandino, depois que enchia toda a gente de medo de almas do outro mundo, medo, esse, enxertado de bom humor e algumas insinuações pícaras e mais ações milagrosas como aquela do aparte da briga, começava a falar, devagarinho, em ir embora. Ninguém queria que ele fosse embora. E então ocorria um fenômeno curioso, que a todos intrigava. Ele dava em evitar a vista dos outros. De manhã cedo, à hora de empeçar a lida no estabelecimento, ele também encilhava o seu cavalo. Deixava o pessoal tomar os seus rumos campeiros e só então montava. Preferia vaguear, ao tranquito, solitário, pelo dorso das coxilhas. Saudoso das percorridas de antanho? Não era homem que transpirasse saudade pelo tempo passado. Talvez ele fosse, quem sabe?, extraviar os pensamentos incômodos no amplíssimo cenário gauchesco do pampa. Ao meio-dia voltava tranquilo, como de costume. Almoçava sobriamente. E daí a pouco montava a cavalo outra vez. Agora ia em busca da sombra sossegada dos capões. Quando o sol baixava, tomava banho na sanga, lavava a ceroula e a camisa e bem ao entardecer ia se chegando de novo pras casas. Ao avistá-lo, os cachorros latiam, não com estranheza, mas festejando-o.

Bem, que remédio!, era preciso voltar para casa, para o aconchego da sua mulher e dos filhos, que o adoravam, e ainda para as fuzilarias de pancadas dos seus fantasmas, já quase amados. A verdade é que, nas suas ausências de casa, tanto ele como a sua família descansavam os ouvidos daquelas impertinências a tardias horas da noite.


A hora da despedida era também a hora dos presentes. Meu pai lhe dava um cavalo, um empregado da venda lhe regalava um coxonilho para os arreios, minha mãe abarrotava sua mala de garupa com fiambres, os peães se esmeravam presenteando-o com tentos, maneias, maneador, sovéu, não que o supusessem homem de lidas campeiras, mas porque, para quem viaja tanto, um dia essas coisas fazem falta para, por exemplo, atar o montado à soga. É provável que, em cada percorrida dessas pela parentalha espalhada pelos caminhos da fronteira, ele ganhasse uns quatro ou cinco cavalos e mais, além do já referido, casacos, bombachas, lenços de pescoço, palas. Chegava em casa repontando uma quadrilha de cavalos, um deles aguentando no lombo a carga dos presentes. E o que fazia com tantos cavalos? Escolhia o melhor para a sua montaria e os demais vendia. Essa era a sua safra anual.

A nossa casa, de todos os parentes, era a que ficava mais distante da do tio Brandino. Ele principiava por lá as suas andanças.

Vejo-o saindo estrada afora, de volta, no seu baio-ruano marchador, enxuto como chegou, com um cavalo de tiro, puxado pelo cabresto. O seu vulto sumindo-se na ponta do cerro, o pala abanando, na luz da manhã, congraçava com o inolvidável. Ia-se embora, mas deixava um rasto de cismas a inquietar a imaginação da gente, mui especialmente da gente-guri.

Depois da última viagem, que foi a mais demorada, ele chegou em casa com uma esquisitice no olhar e no jeito de cumprimentar as pessoas, sua mulher, seus filhos, seus netos, que  deixou a todos intrigados, de sobreaviso. E foi na noite do dia da chegada que... Bem, já era meia-noite, uma hora, uma e meia!... Faltava só meia hora do prazo que tinha o fantasma para se manifestar. E nada! Quem diria? Até parecia que o tinha esquecido. Ordinário! E após, saiu-lhe um “ingrato!”. Cadê o estouro, o bombardeio? Não era possível! Não se aguentou no quarto, foi pra rua, deu volta à casa, uma, duas, três vezes, rondando o invisível. Miserável! Por que não bates? Porque sabes que estou aqui, junto de ti, do lado de fora, armado. Não tens medo das balas dos vivos, é? Talvez não tenhas vindo hoje, só para me amolar, me desapontar, após um mês e meio de ausência.


- Pai, vovô, Brandino, bem pra dentro? - pediam os filhos, os netos, a mulher. Mas ele, valentão, acendeu um cigarro. Talvez fumasse até três cigarros, um atrás do outro. Não, não cometeria essa infantilidade, o fantasma seria capaz de rir dele, vendo que estava mas era com medo. Hedionda, sim, hedionda, a risada e fantasma! E ainda mais assim, ao redor das casas. Ainda se fosse no cemitério! Cemitério é que era lugar de fantasmas. Cemitério!

- Entra, papai, entra!

- Pois que me ataque o bicho, a fera, o cachorro louco, o lobisomem, o diabo, a alma penada, a mula sem cabeça, seja lá o que for, que me ataque, agorinha mesmo, já passa da meia-noite.

- Vovô, entra!

- Venham, almas do outro mundo! Não quero morrer sufocado de medo dentro de casa. Venham, não sairei daqui chispando. E atirarei! Hoje eu atiro. O meu 38 está azeitado. Não negará fogo. Engraçadinho, quero te ver correndo sem perna, sem cabeça, aos trambulhões, como galinha degolada. Mas olha, por amor de Deus, não vai ensanguentar a areiazinha fina que botei embaixo da janela. Eu vou entrar, porque só eu estando lá dentro tu te atreves.

Primeira pancada.

- Cuidado que te dou um tiro no pescoço, desgraçado! Eu sou homem pra isso. Ainda não me conheces, por incrível que pareça, depois de tantos anos de convivência. Tu és meu inimigo, fantasma. Agora me convenço disso, porque. do contrário, já me terias falado. Ou, quem sabe?, estarei sendo injusto, se foste condenado a cumprir este triste fadário. Bate mais forte, bate! Verás que não sou o covarde que pensavas que eu fosse. Tuas pancadas são fortes, acordam todo o mundo? Pois vou te mostrar como o meu 38 é mais forte ainda. Tem seis balas no bucho para o bucho de alguém que eu conheço., Êta, revólver de confiança, este! Nunca negou, o danado, mas também nunca dei nenhum tiro. Não, em gente não atiro, sou incapaz duma barbaridade dessas, mas em fantasma malcriado que sai ... que sai da onde, meu Deus? Da cova, do inferno, das nuvens ... Não, do céu não pode ser! E vem perturbar a tardias horas da noite o sossego das pessoas de bem, ah!, nesse eu atiro.

- Pai, deixa acender uma vela, pai!

- Não, esse espírito asqueroso ia me tomar por covarde.

- Mas, pai, nunca foste assim. Sempre foste tão pacincioso com esse teu fantasma que, afinal, não parece tão ruim como dizem que são as almas do outro mundo. A gente até já se acostumou com ele. Quando tu demoras muito nessas tuas viagens, nós estranhamos a falta dos ribombos da meia-noite, que até nos ajudam a dormir.

- Não, nada de luz. Hoje, dois amigos-inimigos vão se defrontar nesta janela. Não me reconheces? Será que mudei tanto neste mês e meio de ausência? Ou estarás fazendo pouco caso de mim? Só agora te mostras inteiro, como é a tua índole de verdade. Nem posso te chamar de visão, porque jamais me apareceste diante dos olhos. E no entanto às vezes me parece que quase posso tem tocar. Não sabes o quanto cismo contigo ao longo dos caminhos, nessas minhas viajadas compridas. Me vingarei. Me vingarei sobretudo do teu silêncio, apesar de fazeres tanto barulho. Mas o caso é que não abres a boca e isto é o que mais desatina. Me vingarei por mim e por todos os que já amedrontaste, em vida ou depois da morte. Mas, afinal, fantasma que me persegues há vinte anos, que espécie de ser tu és? Quem sabe se um dia não nos compreenderemos, se falares?! Ué, e por que não? Andas no ar, mas pisas no chão e deixas marca. Já temos aí alguma parecença. Mas... pressinto o desenlace desta agonia, da tua agonia, da minha agonia, das nossas agonias enlaçadas por fim e perdendo-se para sempre no além de ode vieste, nessa região de brumas onde as horas e os dias não contam. Tu serias o vaqueano e eu o andante distraído que sempre fui.

- Pai, vou acender uma vela.

- Já disse, não quero luz. Vocês estão ouvindo as pancadas?

- Não, pai, não ouvimos nada.


- Mas vocês não ouviam antes?

- Sim, antes nós ouvíamos, mas hoje não.

- Então, a implicância é só comigo mesmo. Bem que eu vinha supondo!

- Brandino, vem te deitar, homem de Deus! - rogou-lhe a mulher. Já são quase duas, falta só um pouquinho pra esse tinhoso ir embora pra os seus cafundós.

- Ah, quase duas, já! Espera aí um momento, fantasma. Talvez esta seja a nossa vez, a vez da gente se conhecer. Escuta: quem sabe se tu pensas de mim uma coisa que eu não sou e eu penso de ti o que não és? E se fôssemos uma natureza tão diferente da que pensamos que somos? Não seremos iguais? Por que não respondes? Não, não batas mais, não aguento mais esta tortura! Vou abrir a janela e atirar. Te escapa, senão te baleio.

- Pai, tiro em fantasma ricocheteia!

- Brandino, homem de Deus!

No amplo vazio da noite soou um estampido.

O drama destas últimas horas o tio Brandino não contaria para mais ninguém.


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* Instado pelo jornalista e escritor carioca  Cícero Sandroni, então editor da revista Ficção – Histórias para o prazer da leitura-, Cyro Martins enviou-lhe um conto inédito – “O Gigante de Pé Grande”. Em julho de 1977, saia o texto publicado, na revista do Rio de Janeiro.(Revista Ficção. v.19:p.6-13, Rio de Janeiro, julho 1977).


Saberia, então, o autor
que estava levando ao público leitor o embrião da novela que só seria publicada 1982? Como não era de guardar inéditos por muito tempo, possivelmente já estivesse mesmo ensaiando a história de Brandino, o "príncipe", que surpreende do início ao fim, narrada com a sutileza e o bom humor de quem conhece a fundo as misérias e grandezas da alma humana. Enfim, uma novela que, para muitos, é a obra-prima de Cyro Martins.

Reproduz-se abaixo o texto tal qual foi publicado em Ficção. Uma amostra das possíveis origens de
O Príncipe da Vila. (MHM)