Travessias: 75 anos da República Italiana no RS
Eliane Tonello*
Tudo começou com a saída das aldeias do norte da Itália até a chegada nas glebas coloniais da serra gaúcha, afirma o Doutor em história pela Université Catholique de Louvain, Bélgica, e professor da UPF-RS, Mario Maestri, em seu artigo “A travessia e a mata: memória, mitos e história na imigração italiana para o RS”. Na versão abreviada, foi apresentado no IX Fórum de Estudo Ítalo-brasileiro, em 1999, na Universidade de Caxias do Sul e publicado na revista Tempos Históricos, Mal. Cândido Rondon, em 2000, que será a base deste texto. Em sua obra, o professor infere que os mitos, memórias e histórias fazem parte de uma historicidade, seja ela escrita ou oral. Mesmo com possíveis distorções entre uma memória consolidada e fatos históricos, são iluminadas esferas obscuras dos próprios acontecimentos marcados nas intergerações. O movimento migratório brasileiro foi implementado, a partir do sucesso das colônias alemãs, em 1824, por um estado escravista arcaico, em um contexto de uma nação negreira. A organização e a implantação da colonização camponesa foi certamente a grande e única iniciativa nacional do Estado escravista, gerando, até certo ponto, consequências revolucionárias para a nação (Maestri, 2000). O pesquisador apresenta diversos relatos referentes a percalços e dificuldades durante a longa “travessia”, iniciando pelos altos preços das passagens para chegar até o Porto de Gênova. Se o exame médico ou comitê sanitário detectasse alguma doença, de imediatoos emigrantes seriam impedidos de viajar. As recordações agradáveis ficaram apenas na primeira e segunda geração, incluindo as breves viagens ferroviárias e as visitas a museus, monumentos, praças, galerias nos grandes centros em Pádua, Verona, Mantua, Brescia, Vicenza, Treviso, Milão e outras. Era sabido que epidemias ocorriam no percurso, com os corpos dos mortos sendo jogados ao mar. Também há relatos de que passageiros enfermos que estariam contagiados, para não afetar os demais, após receberem a absolvição pelos sacerdotes, eram jogados vivos ao mar. O “mal do mar” os acompanhou e, para alguns, os vômitos ocorriam em coro. Outro acontecimento, um sepultamento inusitado, ocorreu quando o relógio marcou meia noite. A operação das máquinas parara, para que as hélices não estraçalhassem o corpo lançado ao mar, envolto a uma mortalha branca e com pesos atados aos pés. No texto do professor, ele alude que, mesmo o elevado número de mortes dos idosos e recém-nascidos sendo esperado, este ‘descarte’ sumário no mar pesaria na memória de uma comunidade habituada a realizar rituais. Outra preocupação seria o onipresente pavor do naufrágio durante o processo do cruzamento do Atlântico, quando percebiam que poderia ser colocado nos veleiros antiquados, ao invés de 300 passageiros, um número total de até 800. Não era em vão que, camponeses inexperientes com frequência, recorriam a cartas para expressar o desejo de retornar à terra natal. Era também uma aflição para as mães que durava aproximadamente os 40 dias da viagem, “as crianças não podem sair de perto” (Maestri, 2000). Continua o autor, sublinhando que as desagradáveis surpresas continuavam durante toda a viagem até chegar ao destino, inclusive durante a estada nos portos, quando vigaristas e espertalhões os ludibriavam e roubavam. De forma preventiva, a recomendação era de que o dinheiro fosse entregue aos capitães dos navios. Como tinham conhecimento da indisponibilidade de utensílios diversos, trouxeram na bagagem vestimentas, produtos de cama, pentes, chapéus, sombrinhas, instrumentos de trabalho, máquina de fazer macarrão, relógios, espingardas, lampiões, navalha para barbear, tubos para fazer velas, pedras para afiar e até rodas de carroças. Maestri (2000) descreve muito bem que a alimentação e a bebida eram escassas. Dependendo da embarcação utilizada, havia disponibilidade, embora limitada, de polenta, vinho e bolacha para as crianças. A água era quente e fétida, apenas os passageiros que davam “parte” de doentes é que recebiam “um litro de água fresca”. Nos transatlânticos, bois e cavalos eram transportados e abatidos durante a viagem. Mesmo que a taxa de analfabetos da população transportada para o Rio Grande do Sul fosse alta, não foram poucas as informações registradas nos livros de anotações dos navios. Indago: o que será que ainda ficou por revelar em todo este processo de imigração, realizado por dezenas de milhares de imigrantes italianos que se estabeleceram no Rio Grande do Sul, entre 1875 e 1914? Na chegada, a manutenção do considerável índice de mortalidade infantil já existente, inclusive no país de origem, não foi impedimento para a explosão da natalidade e o desenvolvimento populacional Ítalo-gaúcho. Nada intimidou os emigrantes que deixaram a “terra-mãe-ingrata” sonhando construir uma vida nova no “Mundo Novo”. Esta experiência era vivida como uma libertação, e o fluxo da emigração foi mantido por longas décadas de forma quase ininterrupta. O professor e pesquisador relata que em 1883, oito anos após o início da ocupação colonial, o cônsul italiano em Porto Alegre, Enrico Perrod, relatando sua visita às colônias de Conde D’Eu e Dona Isabel, escreveu sobre a paisagem: “Não há um palmo sequer de campina no horizonte à vista, a não ser o que foi desmatado. Senão, é apenas uma densa floresta que impõe o terror”. Segundo ele, o sucesso na história da colonização italiana no RS se deve às qualidades intrínsecas do imigrante associadas à honestidade, à sobriedade, à economia, “ao amor do colono italiano ao trabalho”. Em 2 de junho de 2021, foram comemorados de forma online os 75 anos da República Italiana no RS, em um evento sob coordenação do Cônsul-geral da Itália em Porto Alegre - RS, o Sr. Roberto Bertot, quando foi homenageado o pai da literatura italiana, o poeta florentino Dante Alighieri, pelos 700 anos de sua morte. É comum que nas famílias as “memórias tristes” sejam ocultadas. Quando o luto não pode ser pensado em uma geração, este é passado para gerações seguintes, são conclusões a que cheguei em minhas pesquisas e estudos como psicóloga clínica, sobre os processos intergeracionais e de transgeracionalidade. O leitor poderá encontrar ainda em meu romance, premiado em 2020, “A Espiral de Gerações”, uma mescla de histórias reais e ficcionais que são apresentadas de forma bastante sensível, juntamente com desenhos acarvão vegetal de minha autoria. Do início ao fim, as emoções são provocadas e permanecem à flor da pele, ao retratar memórias e segredos que percorrem gerações. Essas mortes nos navios e no mar, relatadas nas memórias e histórias de imigração, tangenciam as mortes na pandemia, pela covid19, sem velório e sem despedidas. O luto resta de difícil elaboração. É provável que as histórias desta pandemia de 2020/21 percorram gerações. A literatura tem seu papel no resgate de memórias culturais e afetivas em uma sociedade, tanto de adultos quanto de crianças. Lembro ao leitor que também poderá vivenciar distintas sensações e fatos familiares e culturais através da leitura de “Layla e a Uva” (sonho) e “Layla e Pedro” (esperança/cuidado), obras infanto-juvenis quadrilíngues (português, italiano, espanhol e inglês) de minha autoria. É uma oportunidade para o leitor revisitar e tecer sua história. Um sopro de esperança em tempos pandêmicos. ----------- * Eliane Tonello é Escritora, Psicóloga e Presidente da Associação das Jornalistas e Escritoras do Brasil - RS. Membro do Grupo de Colaboradores do CELPCYRO. Contato: eliane.tonelo@gmail.com
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