Discurso de José Eduardo Degrazia |
Discurso de José Eduardo Degrazia
CYRO MARTINS
Médico, escritor, ensaísta, psicanalista, e antes de tudo humanista, nasce Cyro Martins em 1908, na cidade de Quaraí, fronteira com o Uruguai. Estuda seus primeiros anos no colégio Anchieta de Porto Alegre situação bem mostrada por ele em Um menino vai para o colégio1. Forma-se em medicina em 1933. Nas férias, Cyro Martins volta à casa paterna, onde no bolicho de beira de estrada de propriedade da família, vê as cenas e os personagens que influenciarão toda sua trajetória de escritor. Após a formatura retorna à cidade natal, para clinicar, onde trabalha até 1937. A vida de médico interiorano será retratada muitos anos depois na A dama do saladeiro2. Ainda no ano de 1937 vai para o Rio de Janeiro estudar Neurologia, Psiquiatria e Medicina Legal. Em 1939 é um dos fundadores da Sociedade de Neurologia, Psiquiatria e Medicina Legal no Hospital Psiquiátrico São Pedro, de Porto Alegre. Depois de muitos anos de trabalho na clínica, toma a decisão de fazer a formação psicanalítica em Buenos Aires. Conforme o crítico e seu editor, Carlos Jorge Appel3: “Duas decisões na vida de Cyro Martins, a de sair da campanha para Porto Alegre, e de Porto Alegre para Buenos Aires, para onde foi delinear o seu destino, me parecem fundamentais para compreendê-lo. Para ele, infância, adolescência e maturidade compõe um longo arco, uma metáfora da construção/desconstrução permanente da vida.” Retorna Membro da Associação Psicanalítica Argentina. Em 1957 é eleito Presidente da Sociedade de Neurologia, Psiquiatria e Neurocirurgia. Inicia, nesse mesmo ano, a atividade de professor no Instituto de Psicanálise. Em 1964 publica Do mito à verdade científica4, onde enfeixa os ensaios e conferências de tema psicanalítico. Volta ao tema, em 1970, com o ensaio A criação artística e a psicanálise5 e, nos anos seguintes, publica vários livros sobre a condição médica e a relação médico-paciente.
A riqueza da obra ensaística de Cyro Martins, impossível de sintetizar nesse breve apanhado, mostra muito bem a força de seu pensamento, fundamentado na psicologia dinâmica, na cultura humanística, e no trabalho clínico de mais de 50 anos. Para o público culto e a população em geral, escreveu ensaios sobre temas importantes de Psicologia, de Sociologia e Literatura. Para os médicos escreveu obras sobre a relação médico paciente cujas noções devem ser relembradas na prática diária. Dessa mesma fonte vem a compreensão da Medicina e de suas transformações ao longo do tempo. Em “Nevoeiro denso”, narrativa autobiográfica de A dama do saladeiro, diz Cyro Martins: “No interior, naqueles tempos, as coisas diferiam muito. Quando havia perigo de vida, o médico socorria com a tensão que exige um ato dramático, pondo no gesto e na atitude mais do que a habilidade profissional, pondo a própria compaixão. E quando ia devagar, ia devagar mesmo, de casebre em casebre, decorando a história de cada família, como se o tempo não contasse. Não consistiria nisso a essência milagrosa que operava tantas curas de explicação impossível.” Diz ainda, em Incidências contemporâneas na relação médico paciente6: “Pairam sobre esse panorama sociocultural de nossa profissão inúmeras interrogações. E essas procedem das massas maltratadas pela instituição previdenciária e da consciência justamente reivindicante da classe médica lesada nos seus interesses.”
O ESCRITOR Expoente da geração do “Romance de 30” no Rio Grande do Sul, ao lado de Érico Veríssimo e Dyonélio Machado, mudou a visão de mundo regionalista, transformando a figura do gaúcho tradicional, na trilogia do “gaúcho a pé”, de que fazem parte os romances Sem rumo7, Porteira fechada8 e Estrada nova9. O crítico Carlos Jorge Appel diz que na trilogia “Cyro Martins faz uma operação dolorosa, um corte vertical e profundo nos problemas socioeconômicos que afligem a campanha a partir de 1910-1920 e que vêm se avolumando”. Vemos que toda a obra do Autor busca exatamente isso, captar o mundo em mudança do interior da metade sul do Rio Grande do Sul, entre a Revolução de 23 e a de 30. Mudanças que já vinha do tempo da Revolução Federalista de 93.
Com a publicação de Campo fora10 inicia o Autor a reprodução dos quadros que via no campo. São situações ainda juvenis, de uma visão idílica da realidade campeira. Segue a publicação de Sem rumo, e os demais romances que irão mudar completamente a concepção que tínhamos sobre a vida campestre do Estado. Enquanto as águas correm11 de 1939, Porteira fechada de 1944, e Estrada nova de 1954. São obras capitais para o entendimento da revolução na concepção regionalista no Rio Grande do Sul. Vindo de uma tradição que remonta a João Simões Lopes Neto, Alcides Maia e Ramiro Barcellos, volta o olhar para os despossuídos do campo, que são obrigados a abandonar a terra em busca de um pequeno exílio na periferia das cidades. É a grande contribuição de Cyro Martins à literatura gaúcha e brasileira. Publica mais os livros de contos A entrevista12, de 1968, Rodeios e estampas13 de 1976, A dama do saladeiro de 1980, retornando ao Romance com Sombras na correnteza14 de 1979, O príncipe da vila15 de 1982, Gaúchos no obelisco16 de 1984, Na curva do arco-íris17 de 1985, e O professdor18 de 1988. Nesses romances temos narrativas de cunho psicológico e o retorno a temas históricos do Rio Grande do Sul. É, sem dúvida nenhuma, Cyro Martins um dos nossos autores maiores, ao lado de Érico Veríssimo, Ivan Pedro de Martins, Dyonélio Machado, e de escritores de gerações mais recentes como o também médico Moacyr Scliar. Mesmo não se considerando um escritor regionalista, – diz, no livro já citado sobre o “Romance de 30”: “Como ficcionista tenho procurado fazer uma literatura regional, de fundo eminentemente social, sem ser regionalista” -, faz Cyro Martins um corte profundo na literatura gaúcha, ou como disse Carlos Jorge Appel, na obra citada acima, sobre a coerência de pensamento e obra do Autor: “A de que a modernidade já sempre fez parte da tradição.”
BIBLIOGRAFIA
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