A PALAVRA POÉTICA: INAUGURAL E DERRADEIRA*
Maria Helena Martins**
Passando pela rua Barão de Itapetininga, no centro de São Paulo (SP), em meio a intenso movimento e barulho, ouvi nitidamente este verso: “Eu canto é pra saber o que é que eu penso”. Parei.
Que vontade de ficar um pouco a ouvir aquele cantador de rua nordestino. Mas eu precisava tocar em frente. Restou seu verso: “Eu canto é pra saber o que é que eu penso”.
O que eu ouvira me tocou como pura poesia. Até pelo fato de manifestar estranhamento do óbvio: o poeta não cantava pra expressar suas ideias, suas emoções, mas para saber, descobrir o que pensava ...
A linguagem poética e a linguagem prosaica interagem permitindo inúmeras possibilidades de elaboração de um texto, seja em prosa ou em verso, resultando ou não em poesia. E aquele verso é exemplar.
Entre as características textuais que podem indicar que se trata de linguagem poética destacam-se:
- a ênfase no estranhamento do óbvio – a linguagem revela a capacidade de ser percebida e/ou de expressar algo além das evidências, do já sabido
- o caráter mais subjetivo/expressivo da linguagem – as palavras sublinham o sentimento e expressam-no; seu aspecto racional é secundário, importa mais o emocional, a “ambiguidade poética”, essa maleabilidade significativa.
- o trabalho da palavra – a linguagem se torna mais conotativa, enfatizam-se as figuras de linguagem, a diversidade de significados que cada palavra pode ter. Á semelhança do escultor - que trabalha um bloco de mármore, um punhado de barro, um pedaço de madeira -, o poeta elabora a palavra enquanto som, sinal e sentido, em busca da expressão que almeja.
Já entre as características textuais da linguagem prosaica são marcantes:
- a ênfase na evidência – a linguagem revela a capacidade de observar algo e a intenção de informar a seu respeito de modo racional
- o caráter intencionalmente objetivo da linguagem, sublinhando a clareza de significados, sem ambivalência, sem ambiguidade
- o trabalho com a palavra – a linguagem tem um caráter, digamos, utilitário; busca informar do modo mais direto, usando a palavra mais adequada para transmitir algo, sendo indispensável na comunicação científica, jornalística, pública em geral.
Diante dessas oposições e contrastes, entre a linguagem poética e a linguagem prosaica, seria possível considerar que a palavra poética é aquela que vai se caracterizar como a inaugural e a derradeira?
Seria inaugural porque sua escolha ou sua criação (neologismo) inserida na estrutura de um verso ou de uma frase seria única, nem mesmo um sinônimo satisfaria ao poeta, ao perceber que aquela palavra escolhida/inventada/descoberta é a que cabe no que deseja expressar. E, em consequência, seria também a derradeira, finalmente fora encontrada, não dando lugar a substituição.
Um dos traços mais marcantes na linguagem poética é o estranhamento do óbvio: recurso do poeta ao elaborar seu poema, jogando com as palavras quanto a seu significado, sua constituição sonora, seu aspecto visual, de modo a levar o leitor a perceber sua linguagem como algo novo, inusitado.
Nesse jogo, o poeta envolve o leitor ou o ouvinte numa teia poética. Isto é, pode chegar a um quase emaranhado de significados, sonoridades, imagens cuja expressividade rompe com o conhecido, levando o leitor ou o ouvinte a sensações, emoções e pensamentos incomuns. Por isso, acho que sim: mesmo que pouco de novo apareça no vocabulário, a palavra, em sua expressão poética, é inaugural e derradeira.
Fácil? Então ouçamos o que diz o poeta dos poetas brasileiros:
O Lutador*
Carlos Drummond de Andrade**
Lutar com palavras é a luta mais vã. Entanto lutamos mal rompe a manhã. São muitas, eu pouco. Algumas, tão fortes como o javali. Não me julgo louco. Se o fosse, teria poder de encantá-las. Mas lúcido e frio,
apareço e tento apanhar algumas para meu sustento num dia de vida. Deixam-se enlaçar, tontas à carícia e súbito fogem e não há ameaça e nem há sevícia que as traga de novo ao centro da praça.
Insisto, solerte. Busco persuadi-las. Ser-lhes-ei escravo de rara humildade. Guardarei sigilo de nosso comércio. Na voz, nenhum travo de zanga ou desgosto. Sem me ouvir deslizam, perpassam levíssimas e viram-me o rosto. Lutar com palavras parece sem fruto. Não têm carne e sangue… Entretanto, luto.
Palavra, palavra (digo exasperado), se me desafias, aceito o combate. Quisera possuir-te neste descampado, sem roteiro de unha ou marca de dente nessa pele clara. Preferes o amor de uma posse impura e que venha o gozo da maior tortura.
Luto corpo a corpo, luto todo o tempo, sem maior proveito que o da caça ao vento. Não encontro vestes, não seguro formas, é fluido inimigo que me dobra os músculos e ri-se das normas da boa peleja.
Iludo-me às vezes, pressinto que a entrega se consumará. Já vejo palavras em coro submisso, esta me ofertando seu velho calor, aquela sua glória feita de mistério, outra seu desdém, outra seu ciúme, e um sapiente amor me ensina a fruir de cada palavra a essência captada, o sutil queixume. Mas ai! é o instante de entreabrir os olhos: entre beijo e boca, tudo se evapora.
O ciclo do dia ora se conclui e o inútil duelo jamais se resolve. O teu rosto belo, ó palavra, esplende na curva da noite que toda me envolve. Tamanha paixão e nenhum pecúlio. Cerradas as portas, a luta prossegue nas ruas do sono.
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* Apresentação em SARAU POÉTICO , do CCYM/CELPCYRO, Porto Alegre, 18/10/19 .
** Diretora de Cultura Humanidades e Literatura do CELPCYRO.
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