Getúlio não se concedia nenhuma outra alternativa senão uma das mais notórias: o culto permanente do enigma. O sagaz e astuto estadista exercitava de forma constante o vezo de agir enigmaticamente. Era bastante contumaz esse proceder, ao qual aliava a dubiedade assemelhada à essência da predição, da incerteza, da ambiguidade, do obscuro e intrincado. Muitas vezes, Getúlio agia como um ser esfíngico, como aquele monstro fabuloso com garras de leão, cabeça de mulher, asas de águia e unhas de hárpia, que propunha enigmas ao viandante e devorava os que não conseguiam decifrá-los; em outras, agia como o “Pai dos Pobres” e, por vezes, como o carrasco que permitiu a deportação de Leocádia Prestes para os fornos crematórios de Auschwitz.
A mítica getuliana abriu vagas às comparações mitológicas, entre as quais, segundo Homero, os imortais batalham, uns a favor dos Aqueus, uns em prol dos Troianos, para localizá-lo entre os seres míticos, justapostos entre o bem e o mal.
A perseverança, o silêncio, o recato e a perspicácia foram trunfos decisórios em sua ascensão política. O enigmático silêncio de Getúlio beirava a perplexidade. Nele se refugiava no silêncio de si mesmo, profundo – às vezes sepulcral –, para o encontro com os vários “Getúlios” ocultos no seu interior, e possivelmente para não afugentá-los.
O gaúcho missioneiro, diante de ataques inimigos nas revoluções sangrentas, aprendeu a esperar, a contemplar, a perseverar propósitos e, não raro, a postergá-los. Foram essas condições que o mantiveram sempre no poder. Getúlio, camaleônico até o núcleo medular da personalidade, optava por esperar antes de qualquer postura ou decisão. Como tal, valeu-se do mimetismo para despistar, igualar-se à relva e desaparecer de uma cena, e então reaparecer em outra em que os diversos “Getúlios” aninhavam-se no seu interior. O mimetismo cultural que atribuímos a Getúlio corresponde ao fenômeno a que alguns animais recorrem para confundirem-se com os seres e objetos entre aos quais vivem e aos quais se assemelham, com eles se identificando para escaparem e defenderem-se.
O evidente em todo o seu proceder é o que traduz o envolvimento com o acontecer político: sempre acionado à matreirice selvática, escapava sem deixar rastro ou vestígios. Tudo nele conduzia à dúvida, à desconfiança e à incredibilidade. No íntimo, ao transmitir uma mensagem, ao expor uma ideia, ao contestar uma pergunta, respondia com outra pergunta ou valia-se de uma metáfora para completá-la. “Prefiro que me interpretem do que me explicar”. A questão é que ele jamais prodigalizava elementos para ser explicado – e muito menos interpretado – porque jamais se revelava.
Getúlio agia comumente de forma ambivalente, ambígua e anfibológica, como as respostas do oráculo à Pirro. A maioria das respostas suas eram dúbias e duvidosas, sempre destinadas a confundir e desorientar, ou postergar o que não lhe convinha. As comunicações verbais de Getúlio, em determinados casos, apresentavam-se por “linhas transversas”, especialmente quando desejava levar o adversário a pensar no que ele próprio pretendia que estivessem pensando sobre ele (Getúlio).
Um dos grandes trunfos que integrava seu processo mental era lançar uma certa confusão para desorientar os ouvintes, mas, no fundo, o que ele pretendia era deixá-los pensando, intrigados e curiosos, a se perguntarem “o que Getúlio quis dizer quando afirmou tal coisa?”
Cultivou sempre o imprevisto e várias vezes o improviso e afinava a contemplação; usava a surpresa e a contemporização. Jamais se definia, tampouco se descerrava diante do episódio mais dramático. Preferia contemplar qualquer mensagem antes de agir. Ele era o homem dos contrastes. Apesar de recatado, limitado em suas emoções, e até mesmo exercendo um autopoliciamento sobre elas, nutria um imenso poder de comunicação, uma empatia inigualável. Sua aparente simplicidade deslumbrava, comovia e intrigava, especialmente os inimigos e adversários, que temiam seus efeitos, por vezes inexplicáveis, mas que modelavam as intenções das massas. Eis por que Getúlio foi um dos líderes políticos que mais atraiu inveja, e mais tempo se manteve no poder.
O famoso sorriso, um tanto estereotipado, compunha o conjunto enigmático que lhe pertencia por inteiro. Getúlio não acalentava a mínima restrição em liberar gargalhadas diante de alguma comunicação, muitas vezes sem motivo aparente. Com relação a esse riso, por vezes imotivado, sua filha Alzira é quem melhor o define em Getúlio Vargas, Meu Pai. Sua eficiente auxiliar, relatando um episódio quando o secretariava, diz textualmente: "Ele ria mais para ele mesmo do que para mim, um riso malicioso e interior". Às vezes as frequentes risadas assumiam o mesmo conceito das anedotas do chefe.
Seu olhar não apresentava um declarado estrabismo ou um astigmatismo explícito; mas, em determinados momentos, transmitia análoga impressão. Menotti Del Picchia, ao realizar um estudo da fisionomia de Getúlio, diz: " O seu olhar periférico, o olhar periférico da mosca é mais uma supervisão das distâncias". Suponho que a próxima e imperceptível imperfeição muitas vezes poderia ter sido utilizada para, no plano somático, desorientar e, por vezes, confundir, sem mostrar a quem ele dirigia o olhar. É fato conhecido que os caudilhos gaúchos, principalmente os revolucionários, selecionavam seus homens de confiança baseados na maneira de olhar. Quanto aos caudilhos, não confiavam naqueles que “olhavam para o chão”, sem encará-los frontalmente. Assim agiam, em especial para selecionar os estafetas (os correios da campanha), encarregados muitas vezes de sigilosas mensagens. A mesma prevenção valia para a honestidade das mulheres que, ao contatar com o parceiro, não dirigissem o olhar de frente e que apertassem a mão com a ponta dos dedos.
As conselheiras de campanha incluem tais componentes como algo negativo num relacionamento entre pessoas. No seu olhar, a visão externa acoplava-se à interna. Porém ambas eram ambíguas e enigmáticas. Mas o essencial é que nele imperava uma superior capacidade de ver o que os outros não viam. Em muitas ocasiões em que era instado a emitir opiniões, certamente, valia-se de trocadilhos, usando palavras de duplo sentido, não raro desconcertantes, como ocorreu num diálogo entre ele e o prócere José Vecchio. Aquele queixava-se amargamente do proceder negativo de um certo político, ao que Getúlio, já Presidente da República, sentenciou: "Vecchio, faz como eu, não te mete em política". O inusitado episódio ressalta mais um perfil da sua personalidade de autêntico gozador, que deixa o alvo de suas palavras sem compreensão, nem contestação, envolto em mistério, em um misto de contrariedade e encanto ao mesmo tempo.
Getúlio usava essa tática para desarmar e confundir. De fato, o inolvidável mestre da política valia-se de qualquer subterfúgio para não se expor nem comprometer-se. Senhor absoluto de qualquer público, excepcional cultor da arte de Talma e portador de reconhecida maestria, desempenhava os mais diversos papéis, da comédia ao drama, do dramático ao trágico, tanto no palco como na plateia.
O "Pai dos Pobres" foi um grande ator. Encenou os mais variados gêneros teatrais. Mas, no último ato da última representação, deixou a ribalta com as cortinas arriadas para sempre. No derradeiro momento do último ato, saiu de cena, não com o habitual sorriso fascinante, mas com a face melancólica, a estampar a dor do nunca mais.
No pátio do teatro, os espectadores entoavam hinos taciturnos num profundo cantochão gregoriano. Os espectadores esperavam um aceno, um adeus e o clássico sorriso que contagiava as massas. Foram a sinistra máscara mortuária que os atores gregos portavam para simbolizar o martírio, a desgraça e o fim de
cada tragédia. A alma da tragédia grega foi revivida no último ato. A data histórica transformou-se numa eterna efeméride: vinte e quatro de agosto de 1954.
=================================================
PREFÁCIO
ao livro O enigma na personalidade de Getúlio Vargas, de J.G. Mariante
J.J. Camargo *
Os poderosos têm critérios rígidos para recrutar pessoas novas para o seleto círculo de convívio social. Deste estão excluídos os chatos não familiares, porque aqueles normalmente já preenchem, com sobras, as cotas de penitência que cada um recebe por consanguinidade, para carregar ao longo da vida, antes da morte natural ou do suicídio. Getulio Vargas, era um homem de poucos amigos. Tão poucos que, na turbulência de uma vida incrementada pelo charme do poder absoluto, ficou evidente que apenas Oswaldo Aranha conservou o rótulo de amigo incondicional. Os outros parceiros, em algum momento debandaram, e uns poucos experimentaram o constrangimento da volta, na ingênua tentativa de reconstruir a amizade irreparavelmente estilhaçada.
João Gomes Mariante, o autor desse livro, passou por este filtro delicado e foi chamado para conhecer o Presidente, depois que uma história primorosa chegou aos ouvidos do dono do poder.
Durante uma discussão acadêmica, um jovem de São Paulo, usando uma frase em voga na época e contrariando a modéstia paulista vigente até hoje, disse: “São Paulo é a locomotiva que arrasta vinte vagões vazios” Com os brios pampeiros atropelados, nosso Mariante reagiu: “Mas talvez o colega não saiba que o carvão é de São Jerônimo e o maquinista de São Borja!” Getulio se encantou com o relato e quis conhecer o personagem. Mariante, vivendo no Rio àquela época, mas ainda sem a formação psicanalítica que mais adiante tanto o distinguiu no meio acadêmico e profissional, confessa que se ressentiu da falta dos elementos técnicos que lhe permitiriam mais precocemente reconhecer as nuances daquela rica e complexa personalidade que o tempo e o exercício do poder desnudaram.
Uma parte deste livro é produto do convívio estimulante com as entranhas do poder, mas basicamente revela o quanto aquela personalidade, controversa, camaleônica e plural marcou a juventude e seguiu inquietando a maturidade profissional de um terapeuta que resultou, depois de sete décadas, tão fascinado quanto estava naquele almoço remoto do primeiro dia.
Quando o Professor Mariante pediu-me que prefaciasse este livro em que ele disseca com sensibilidade os meandros recônditos de um ser que nunca se deu a conhecer integralmente, aceitei embarcar neste projeto extasiante, mas admito que me senti mais desafiado e seduzido, do que qualificado.
Constatei que mesmo sem uma percepção clara, eu também tinha sido cooptado por este personagem que entrara na minha vida quando tinha uns cinco anos de idade. Numa época de ideologias inflexíveis e convicções políticas pragmáticas, recordo o quanto me impressionou saber que meu amado avô materno, tinha rompido relações com sua única irmã, que ao contrario dos outros irmãos homens, era getulista fanática, e meu avô, nem falava com esta “gente do PTB”. A ideia que eu tinha de família não comportava este tipo de dissidência afetiva e aquilo me marcou profundamente. Lembro com uma clareza que só a excitação extrema é capaz de incrustar na memória, da manhã memorável de 24 de agosto de 54: minha mãe, ao ouvir pelo radio a noticia de que Getulio se suicidara, perguntou-me se eu era capaz de cavalgar até a fazenda do meu avô para contar-lhe a novidade. Disse que sim, e na excitação de oito aninhos, parti na minha primeira e inesquecível, expedição solo. Como a imagem que eu tinha de cavalgada era muito influenciada pelos filmes de faroeste, galopei até a fazenda de um tio que ficava exatamente a meio caminho, e lá, depois de passar-lhes a noticia fui advertido que, naquele ritmo, era provável que minha égua branca morresse estafada antes de completar o percurso. Mas o galope se impunha pela dupla excitação: levava latejando na garganta uma informação bombástica, e no íntimo a expectativa carinhosa e doce, de que com a morte da discórdia, quem sabe a tia Amália, tão queridinha comigo, pudesse voltar a conviver com a gente. Enquanto as multidões choravam a morte do Getúlio eu procurava sinais de uma reconciliação que nunca ocorreu. Aprendi naquela época que o ódio entre pessoas que se deviam amar é sempre mais duradouro e definitivo.
Quando recuperei o interesse por Getúlio como uma figura inigualável da história brasileira, eu já era adulto, e então passei a ler tudo o que encontrei sobre a sua tumultuada
biografia.
Com este preambulo afetivo, a atração mais do que inevitável foi obrigatória, porque aquele homem pequeno, matreiro, com uma sabedoria política intuitiva, dono da resposta inesperada e desconcertante, sempre me pareceu merecedor de admiração e inveja de quem privilegie inteligência e sagacidade na seleção das pessoas cujo convívio valha a pena.
O Professor Mariante, com uma percepção psicanalítica apurada, enriquece o entendimento do personagem que desde muito cedo revelou uma fixação pela ameaça da própria morte como um instrumento de barganha política. Aquele menino sapeca da infância inocente em São Borja, já mostrava recursos naturais de sobrevivência, como da vez em que subiu num umbuzeiro na companhia de um amiguinho e depois de muito brincarem, acabaram dormindo. Quando despertaram a tarde estavam terminando, e ouviram as vozes ansiosas dos pais que os buscavam por toda a parte. O amiguinho, choramingando, preparou-se para descer ao ouvir o pai de Getúlio anunciar que quando aparecessem, eles iam levar uma sova. Então Getúlio o impediu dizendo: “Agora não é hora. Vamos esperar!”
Na manhã seguinte ao ver a mãe saindo pela porta da cozinha, limpando as lágrimas na barra do avental, anunciou: “Agora sim, vamos descer!” porque o clima de comiseração lhes era muito favorável.
Getúlio fez desta estratégia uma norma de vida, reiterada em inúmeros momentos da sua tormentosa trajetória política. A outra atitude recorrente foi o desassombro em relação a sua própria morte. Num episódio relatado por Lira Neto no seu recente Getúlio impressiona a frieza com que ele encara a possibilidade de morrer. Então, como um jovem deputado, comandava uma tropa de soldados fajutos, recrutados entre a peonada em São Borja, com poucas armas e nenhum treinamento militar, e agora, aquartelados na margem do Uruguai, no umbral de uma batalha feroz, comiam churrasco e mateavam, aparentemente despreocupados. Um velho oficial, picando fumo com calma, vendo-os assim fagueiros, comentou: “Tenho pena desses jovens, que nem sabem que vão morrer!” Ao que Getúlio, retrucou: “E você homem, não vai morrer?”
-“ Eu vou, mas eu sei!”
Pois Getúlio também sabia que quando chegasse a hora da dor sem chance de resgate, ele não relutaria e seu suicídio, que colocou o País estupefato a chorar pelas ruas, foi uma tragédia anunciada.
À semelhança da maioria dos suicídios, o dele foi antecipado em inúmeros momentos em que ele se sentiu diminuído, abandonado ou traído.
E por fim ele cumpriu o que parecia ser uma mera chantagem emocional, e deixou o Brasil com sentimento de culpa por não ter percebido o tamanho do seu desconsolo a tempo de confortá-lo. Constrangidos de tê-lo abandonado a uma solidão intolerável, os seus amados preferiram ignorar seu fracasso como ser humano e trataram de ungi-lo à condição de herói nacional. Foi por isso que se chorou tanto pelas ruas e avenidas do País naquele fatídico agosto que reluta em terminar no coração dos que o amaram.
J.J.Camargo*
* J. J. Camargo é médico, professor de cirurgia torácica na Universidade Federal de Ciências da Saúde do Porto Alegre (UFCSPA). Doutor em pneumologia pela UFRGS, onde formou-se em 1970, fez especialização na Clínica Mayo (EUA).
Foi pioneiro em transplante de pulmão na América Latina em 1989 e o primeiro a realizar transplante de pulmão com doadores vivos fora dos EUA, em 1999. É responsável por dois terços dos transplantes de pulmão feitos hoje no Brasil.
Diretor do Centro de Transplantes da Santa Casa de Misericórdia e membro titular da Academia Nacional de Medicina.
Já presidiu a Asociación Sudamericana de Cirurgía Torácica e a Academia Sul-Rio-Grandense de Medicina (ASRM).
É autor de A tristeza pode esperar, (L&PM, 2013 ). Prêmio Açorianos de Literatura 2014 e Prêmio Livro do Ano AGE 2014), Não pensem por mim (crônicas, AGE, 2008), além de autor de 4 livros na sua especialidade.
Já proferiu mais de mil conferencias em 22 países.
É colunista do caderno Vida, de Zero Hora(Porto Alegre).
O enigma na personalidade de Getúlio Vargas
( inserir o título em Coluna CELPCYRO – João Gomes Mariante: http://www.celpcyro.org.br/joomla/index.php?option=com_content&view=article&id=1009%3Acoluna-celpcyro-joao-gomes-mariante&catid=50%3Acolunistas&Itemid=1 e daí linkar para página em branco com a foto do livro, este texto abaixo, seguido do texto do PREFÁCIO de JJ Camargo.
Getúlio não se concedia nenhuma outra alternativa senão uma das mais notórias: o culto permanente do enigma. O sagaz e astuto estadista exercitava de forma constante o vezo de agir enigmaticamente. Era bastante contumaz esse proceder, ao qual aliava a dubiedade assemelhada à essência da predição, da incerteza, da ambiguidade, do obscuro e intrincado. Muitas vezes, Getúlio agia como um ser esfíngico, como aquele monstro fabuloso com garras de leão, cabeça de mulher, asas de águia e unhas de hárpia, que propunha enigmas ao viandante e devorava os que não conseguiam decifrá-los; em outras, agia como o “Pai dos Pobres” e, por vezes, como o carrasco que permitiu a deportação de Leocádia Prestes para os fornos crematórios de Auschwitz.
A mítica getuliana abriu vagas às comparações mitológicas, entre as quais, segundo Homero, os imortais batalham, uns a favor dos Aqueus, uns em prol dos Troianos, para localizá-lo entre os seres míticos, justapostos entre o bem e o mal.
A perseverança, o silêncio, o recato e a perspicácia foram trunfos decisórios em sua ascensão política. O enigmático silêncio de Getúlio beirava a perplexidade. Nele se refugiava no silêncio de si mesmo, profundo – às vezes sepulcral –, para o encontro com os vários “Getúlios” ocultos no seu interior, e possivelmente para não afugentá-los.
O gaúcho missioneiro, diante de ataques inimigos nas revoluções sangrentas, aprendeu a esperar, a contemplar, a perseverar propósitos e, não raro, a postergá-los. Foram essas condições que o mantiveram sempre no poder. Getúlio, camaleônico até o núcleo medular da personalidade, optava por esperar antes de qualquer postura ou decisão. Como tal, valeu-se do mimetismo para despistar, igualar-se à relva e desaparecer de uma cena, e então reaparecer em outra em que os diversos “Getúlios” aninhavam-se no seu interior. O mimetismo cultural que atribuímos a Getúlio corresponde ao fenômeno a que alguns animais recorrem para confundirem-se com os seres e objetos entre aos quais vivem e aos quais se assemelham, com eles se identificando para escaparem e defenderem-se.
O evidente em todo o seu proceder é o que traduz o envolvimento com o acontecer político: sempre acionado à matreirice selvática, escapava sem deixar rastro ou vestígios. Tudo nele conduzia à dúvida, à desconfiança e à incredibilidade. No íntimo, ao transmitir uma mensagem, ao expor uma ideia, ao contestar uma pergunta, respondia com outra pergunta ou valia-se de uma metáfora para completá-la. “Prefiro que me interpretem do que me explicar”. A questão é que ele jamais prodigalizava elementos para ser explicado – e muito menos interpretado – porque jamais se revelava.
Getúlio agia comumente de forma ambivalente, ambígua e anfibológica, como as respostas do oráculo à Pirro. A maioria das respostas suas eram dúbias e duvidosas, sempre destinadas a confundir e desorientar, ou postergar o que não lhe convinha. As comunicações verbais de Getúlio, em determinados casos, apresentavam-se por “linhas transversas”, especialmente quando desejava levar o adversário a pensar no que ele próprio pretendia que estivessem pensando sobre ele (Getúlio).
Um dos grandes trunfos que integrava seu processo mental era lançar uma certa confusão para desorientar os ouvintes, mas, no fundo, o que ele pretendia era deixá-los pensando, intrigados e curiosos, a se perguntarem “o que Getúlio quisz dizer quando afirmou tal coisa?”
Cultivou sempre o imprevisto e várias vezes o improviso e afinava a contemplação; usava a surpresa e a contemporização. Jamais se definia, tampouco se descerrava diante do episódio mais dramático. Preferia contemplar qualquer mensagem antes de agir. Ele era o homem dos contrastes. Apesar de recatado, limitado em suas emoções, e até mesmo exercendo um autopoliciamento sobre elas, nutria um imenso poder de comunicação, uma empatia inigualável. Sua aparente simplicidade deslumbrava, comovia e intrigava, especialmente os inimigos e adversários, que temiam seus efeitos, por vezes inexplicáveis, mas que modelavam as intenções das massas. Eis por que Getúlio foi um dos líderes políticos que mais atraiu inveja, e mais tempo se manteve no poder.
O famoso sorriso, um tanto estereotipado, compunha o conjunto enigmático que lhe pertencia por inteiro. Getúlio não acalentava a mínima restrição em liberar gargalhadas diante de alguma comunicação, muitas vezes sem motivo aparente. Com relação a esse riso, por vezes imotivados, sua filha Alzira é quem melhor o define em Getúlio Vargas, Meu Pai. Sua eficiente auxiliar, relatando um episódio quando o secretariava, diz textualmente: "Ele ria mais para ele mesmo do que para mim, um riso malicioso e interior". Às vezes as frequentes risadas assumiam o mesmo conceito das anedotas do chefe.
Seu olhar não apresentava um declarado estrabismo ou um astigmatismo explícito; mas, em determinados momentos, transmitia análoga impressão. Menotti Del Picchia, ao realizar um estudo da fisionomia de Getúlio, diz: " O seu olhar periférico, o olhar periférico da mosca é mais uma supervisão das distâncias". Suponho que a próxima e imperceptível imperfeição muitas vezes poderia ter sido utilizada para, no plano somático, desorientar e, por vezes, confundir, sem mostrar a quem ele dirigia o olhar. É fato conhecido que os caudilhos gaúchos, principalmente os revolucionários, selecionavam seus homens de confiança baseados na maneira de olhar. Quanto aos caudilhos, não confiavam naqueles que “olhavam para o chão”, sem encará-los frontalmente. Assim agiam, em especial para selecionar os estafetas (os correios da campanha), encarregados muitas vezes de sigilosas mensagens. A mesma prevenção valia para a honestidade das mulheres que, ao contatar com o parceiro, não dirigissem o olhar de frente e que apertassem a mão com a ponta dos dedos.
As conselheiras de campanha incluem tais componentes como algo negativo num relacionamento entre pessoas. No seu olhar, a visão externa acoplava-se à interna. Porém ambas eram ambíguas e enigmáticas. Mas o essencial é que nele imperava uma superior capacidade de ver o que os outros não viam. Em muitas ocasiões em que era instado a emitir opiniões, certamente, valia-se de trocadilhos, usando palavras de duplo sentido, não raro desconcertantes, como ocorreu num diálogo entre ele e o prócere José Vecchio. Aquele queixava-se amargamente do proceder negativo de um certo político, ao que Getúlio, já Presidente da República, sentenciou: "Vecchio, faz como eu, não te mete em política". O inusitado episódio ressalta mais um perfil da sua personalidade de autêntico gozador, que deixa o alvo de suas palavras sem compreensão, nem contestação, envolto em mistério, em um misto de contrariedade e encanto ao mesmo tempo.
Getúlio usava essa tática para desarmar e confundir. De fato, o inolvidável mestre da política valia-se de qualquer subterfúgio para não se expor nem comprometer-se. Senhor absoluto de qualquer público, excepcional cultor da arte de Talma e portador de reconhecida maestria, desempenhava os mais diversos papéis, da comédia ao drama, do dramático ao trágico, tanto no palco como na plateia.
O "Pai dos Pobres" foi um grande ator. Encenou os mais variados gêneros teatrais. Mas, no último ato da última representação, deixou a ribalta com as cortinas arriadas para sempre. No derradeiro momento do último ato, saiu de cena, não com o habitual sorriso fascinante, mas com a face melancólica, a estampar a dor do nunca mais.
No pátio do teatro, os espectadores entoavam hinos taciturnos num profundo cantochão gregoriano. Os espectadores esperavam um aceno, um adeus e o clássico sorriso que contagiava as massas. Foram apenas contemplados com a sinistra máscara mortuária que os atores gregos portavam para simbolizar o martírio, a desgraça e o fim de
cada tragédia. A alma da tragédia grega foi revivida no último ato. A data histórica transformou-se numa eterna efeméride: vinte e quatro de agosto de 1954.
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PREFÁCIO
ao livro O enigma na personalidade de Getúlio Vargas, de J.G. Mariante
J.J. Camargo *
Os poderosos têm critérios rígidos para recrutar pessoas novas para o seleto círculo de convívio social. Deste estão excluídos os chatos não familiares, porque aqueles normalmente já preenchem, com sobras, as cotas de penitência que cada um recebe por consanguinidade, para carregar ao longo da vida, antes da morte natural ou do suicídio. Getulio Vargas, era um homem de poucos amigos. Tão poucos que, na turbulência de uma vida incrementada pelo charme do poder absoluto, ficou evidente que apenas Oswaldo Aranha conservou o rótulo de amigo incondicional. Os outros parceiros, em algum momento debandaram, e uns poucos experimentaram o constrangimento da volta, na ingênua tentativa de reconstruir a amizade irreparavelmente estilhaçada.
João Gomes Mariante, o autor desse livro, passou por este filtro delicado e foi chamado para conhecer o Presidente, depois que uma história primorosa chegou aos ouvidos do dono do poder.
Durante uma discussão acadêmica, um jovem de São Paulo, usando uma frase em voga na época e contrariando a modéstia paulista vigente até hoje, disse: “São Paulo é a locomotiva que arrasta vinte vagões vazios” Com os brios pampeiros atropelados, nosso Mariante reagiu: “Mas talvez o colega não saiba que o carvão é de São Jerônimo e o maquinista de São Borja!” Getulio se encantou com o relato e quis conhecer o personagem. Mariante, vivendo no Rio àquela época, mas ainda sem a formação psicanalítica que mais adiante tanto o distinguiu no meio acadêmico e profissional, confessa que se ressentiu da falta dos elementos técnicos que lhe permitiriam mais precocemente reconhecer as nuances daquela rica e complexa personalidade que o tempo e o exercício do poder desnudaram.
Uma parte deste livro é produto do convívio estimulante com as entranhas do poder, mas basicamente revela o quanto aquela personalidade, controversa, camaleônica e plural marcou a juventude e seguiu inquietando a maturidade profissional de um terapeuta que resultou, depois de sete décadas, tão fascinado quanto estava naquele almoço remoto do primeiro dia.
Quando o Professor Mariante pediu-me que prefaciasse este livro em que ele disseca com sensibilidade os meandros recônditos de um ser que nunca se deu a conhecer integralmente, aceitei embarcar neste projeto extasiante, mas admito que me senti mais desafiado e seduzido, do que qualificado.
Constatei que mesmo sem uma percepção clara, eu também tinha sido cooptado por este personagem que entrara na minha vida quando tinha uns cinco anos de idade. Numa época de ideologias inflexíveis e convicções políticas pragmáticas, recordo o quanto me impressionou saber que meu amado avô materno, tinha rompido relações com sua única irmã, que ao contrario dos outros irmãos homens, era getulista fanática, e meu avô, nem falava com esta “gente do PTB”. A ideia que eu tinha de família não comportava este tipo de dissidência afetiva e aquilo me marcou profundamente. Lembro com uma clareza que só a excitação extrema é capaz de incrustar na memória, da manhã memorável de 24 de agosto de 54: minha mãe, ao ouvir pelo radio a noticia de que Getulio se suicidara, perguntou-me se eu era capaz de cavalgar até a fazenda do meu avô para contar-lhe a novidade. Disse que sim, e na excitação de oito aninhos, parti na minha primeira e inesquecível, expedição solo. Como a imagem que eu tinha de cavalgada era muito influenciada pelos filmes de faroeste, galopei até a fazenda de um tio que ficava exatamente a meio caminho, e lá, depois de passar-lhes a noticia fui advertido que, naquele ritmo, era provável que minha égua branca morresse estafada antes de completar o percurso. Mas o galope se impunha pela dupla excitação: levava latejando na garganta uma informação bombástica, e no íntimo a expectativa carinhosa e doce, de que com a morte da discórdia, quem sabe a tia Amália, tão queridinha comigo, pudesse voltar a conviver com a gente. Enquanto as multidões choravam a morte do Getúlio eu procurava sinais de uma reconciliação que nunca ocorreu. Aprendi naquela época que o ódio entre pessoas que se deviam amar é sempre mais duradouro e definitivo.
Quando recuperei o interesse por Getúlio como uma figura inigualável da história brasileira, eu já era adulto, e então passei a ler tudo o que encontrei sobre a sua tumultuada
biografia.
Com este preambulo afetivo, a atração mais do que inevitável foi obrigatória, porque aquele homem pequeno, matreiro, com uma sabedoria política intuitiva, dono da resposta inesperada e desconcertante, sempre me pareceu merecedor de admiração e inveja de quem privilegie inteligência e sagacidade na seleção das pessoas cujo convívio valha a pena.
O Professor Mariante, com uma percepção psicanalítica apurada, enriquece o entendimento do personagem que desde muito cedo revelou uma fixação pela ameaça da própria morte como um instrumento de barganha política. Aquele menino sapeca da infância inocente em São Borja, já mostrava recursos naturais de sobrevivência, como da vez em que subiu num umbuzeiro na companhia de um amiguinho e depois de muito brincarem, acabaram dormindo. Quando despertaram a tarde estavam terminando, e ouviram as vozes ansiosas dos pais que os buscavam por toda a parte. O amiguinho, choramingando, preparou-se para descer ao ouvir o pai de Getúlio anunciar que quando aparecessem, eles iam levar uma sova. Então Getúlio o impediu dizendo: “Agora não é hora. Vamos esperar!”
Na manhã seguinte ao ver a mãe saindo pela porta da cozinha, limpando as lágrimas na barra do avental, anunciou: “Agora sim, vamos descer!” porque o clima de comiseração lhes era muito favorável.
Getúlio fez desta estratégia uma norma de vida, reiterada em inúmeros momentos da sua tormentosa trajetória política. A outra atitude recorrente foi o desassombro em relação a sua própria morte. Num episódio relatado por Lira Neto no seu recente Getúlio impressiona a frieza com que ele encara a possibilidade de morrer. Então, como um jovem deputado, comandava uma tropa de soldados fajutos, recrutados entre a peonada em São Borja, com poucas armas e nenhum treinamento militar, e agora, aquartelados na margem do Uruguai, no umbral de uma batalha feroz, comiam churrasco e mateavam, aparentemente despreocupados. Um velho oficial, picando fumo com calma, vendo-os assim fagueiros, comentou: “Tenho pena desses jovens, que nem sabem que vão morrer!” Ao que Getúlio, retrucou: “E você homem, não vai morrer?”
-“ Eu vou, mas eu sei!”
Pois Getúlio também sabia que quando chegasse a hora da dor sem chance de resgate, ele não relutaria e seu suicídio, que colocou o País estupefato a chorar pelas ruas, foi uma tragédia anunciada.
À semelhança da maioria dos suicídios, o dele foi antecipado em inúmeros momentos em que ele se sentiu diminuído, abandonado ou traído.
E por fim ele cumpriu o que parecia ser uma mera chantagem emocional, e deixou o Brasil com sentimento de culpa por não ter percebido o tamanho do seu desconsolo a tempo de confortá-lo. Constrangidos de tê-lo abandonado a uma solidão intolerável, os seus amados preferiram ignorar seu fracasso como ser humano e trataram de ungi-lo à condição de herói nacional. Foi por isso que se chorou tanto pelas ruas e avenidas do País naquele fatídico agosto que reluta em terminar no coração dos que o amaram.
J.J.Camargo*
* J. J. Camargo é médico, professor de cirurgia torácica na Universidade Federal de Ciências da Saúde do Porto Alegre (UFCSPA). Doutor em pneumologia pela UFRGS, onde formou-se em 1970, fez especialização na Clínica Mayo (EUA).
Foi pioneiro em transplante de pulmão na América Latina em 1989 e o primeiro a realizar transplante de pulmão com doadores vivos fora dos EUA, em 1999. É responsável por dois terços dos transplantes de pulmão feitos hoje no Brasil.
Diretor do Centro de Transplantes da Santa Casa de Misericórdia e membro titular da Academia Nacional de Medicina.
Já presidiu a Asociación Sudamericana de Cirurgía Torácica e a Academia Sul-Rio-Grandense de Medicina (ASRM).
É autor de A tristeza pode esperar, (L&PM, 2013 ). Prêmio Açorianos de Literatura 2014 e Prêmio Livro do Ano AGE 2014), Não pensem por mim (crônicas, AGE, 2008), além de autor de 4 livros na sua especialidade.
Já proferiu mais de mil conferencias em 22 países.
É colunista do caderno Vida, de Zero Hora(Porto Alegre).
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