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Exercícios de Leitura ( I ) - Maria Helena Martins*
Além da Letra - Acontecências



                 Era assim.

                Ás quintas-feiras, dia de composição (ainda não se chamava redação), a professora chegava com um rolo fino e comprido e já ia desenrolando-o em direção a um suporte num canto da sala, “o mais inspirador”, dizia ela. No meu caso, era bom porque não batia reflexo de luz no que era exposto. Importava muito enxergar bem o que vinha ali. E ela fazia a chamada, pedia para alguns alunos apresentarem a lição passada pra casa, esclarecia dúvidas e indagava se havia perguntas. Mas a maioria da classe estava mesmo era de olho no painel, agora pendurado, só que de costas para nós. Era uma eternidade aquela espera...

                Por fim, sem qualquer comentário, ela levantava de sua mesa e ia virar o painel que teria cerca de 1,50m por 1,00m. Surgia diante de nós uma imagem. Invariavelmente colorida. Ás vezes, com poucas figuras humanas, objetos e mesmo sem um fundo, sem paisagem; outras, com uma profusão de gente, coisas, animais, natureza...

                Depois de uma exclamação geral expelindo entonações e sensações diversas, o silêncio. Ela voltava para a mesa e se punha a corrigir nossos cadernos, deixando-nos a matutar de olhos grudados na imagem exposta. Poucos começavam a escrever de imediato. Alguns ficavam olhando o painel, mas parece que viam algo muito além dele...

                Nas primeiras daquelas quintas-feiras, a professora ficara nos incentivando a observar as imagens e a descrevê-las, oralmente, nos mínimos detalhes. Aos poucos ia puxando uma história, cujo fio condutor nos passava logo que sentia a turma envolvida. E juntos acabávamos armando uma sequência de acontecimentos mal ou bem urdida. Era divertido. Com o passar do tempo, ela não interferia mais e pedia silêncio: enquanto olhávamos /líamos as imagens e para cada um escrever a sua história do que via, temperada pela imaginação, porque sem ela “o que se escreve tem gosto e cheiro só de papel”, dizia.

                Não sei quanto tempo ficávamos escrevendo, mas me surpreendia quando a professora avisava que AINDA tínhamos 10 minutos. Eu sempre estava atrasada... Então tocava a sineta anunciando o recreio. Uns saiam ligeiros, outros, sem pressa; alguns ainda ficavam retocando seu escrito. No pátio, quase não se falava sobre o que se escrevera. Um que outro elogiava ou reclamava da imagem apresentada.

                Na volta para a sala de aula, a professora ia logo dizendo: “Quem começa?” Sempre tinha alguém mais afoito ou corajoso ou exibido... Passava para a frente da classe e se punha a ler seu escrito. Não se sabia se o silêncio da turma acalmava os nervosos, incentivava ou reprimia os inibidos – mas era indispensável para todos e acontecia sem ser pedido. E a gente ouvia com atenção as histórias inventadas pelos colegas.

                “Para ler e escrever tem que observar e ter imaginação”

                Guardei como uma máxima essa reiterada assertiva daquela professora, Dona Yollanda, a propósito do que ela chamava de “exercícios de leitura e escrita”, embora eu não tivesse muita noção do que isso de fato significava. Tinha oito, nove anos.

                Relembro aqueles quadros prontos (não saberia dizer se faltava algum elemento que pudesse dar ao todo um aspecto de incompletude, nem lembro se tinham título, acho que não, perderiam muito da graça): parecia tudo em seu lugar, à espera de uma história. Curioso é que cada leitor tinha a SUA história a contar, e achávamos isso normal. Melhor: a professora não queria UMA leitura, mas as NOSSAS leituras.

                                                                                                                                    Lições de casa - capa


                Nada de original nessa atividade e nessa lembrança. Osman Lins e Julieta de Godoy Ladeira, em 1966, descobriram que esse tipo de exercício percorrera, por décadas, as salas de aula brasileiras de norte a sul, o que resultou na coletânea Lições de Casa: exercícios de imaginação.¹ E, pelos depoimentos dos autores desse livro, tais exercícios foram importantes em sua formação. Para mim também – tanto assim que lembro vivamente deles, agora. Mas quando criei uma Salinha de Leitura, em Porto Alegre (1979), nem me ocorreu propor às crianças exercícios como aqueles da minha infância.2 Tinha bem mais presente, e queria experimentar com elas, alguns dos exercícios que fizera em curso na San Francisco State University: Reading Specialist, na Califórnia, de onde acabara de voltar.3 Em geral, acontece assim - é difícil resistir a novidades. Em especial quando se ficou marcado por elas.

                Passadas algumas décadas, percebo claramente que os exercícios de leitura e escrita com Dona Yollanda deixaram marcas muito mais profundas do que eu imaginara. Certamente foi ela, depois de meu pai 4, quem plantou em mim sementes que foram crescendo, desenvolveram-se durante  minha formação básica e meu trabalho na Salinha de Leitura, resultando na noção que norteou meu livrinho O que é Leitura ( 1982), ainda sendo útil, e, no mais recente, Enigmas da leitura. 5-6.

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*  Professora de literatura, pesquisadora de leitura, Diretora de Cultura, Humanidades e Literatura do CELPCYRO

     NOTAS

1.  Vários Autores. Julieta de Godoy Ladeira (org). Lições de Casa; exercícios de imaginação. Melhoramentos, 1966.

2.   A partir da experiência nessa Salinha de Leitura, realizei meu doutorado na FFLCH/USP, do qual resultou o livro Crônica de uma utopia; Leitura e literatura infantil em trânsito. Brasiliense,1988.

3.    A San Francisco State University, em São Francisco da Califórnia, é uma Universidade pública, com características semelhantes às nossas, na época: nada de especial nas grades curriculares ou em docentes e alunos. Era bem diferente da famosa e elitista UC Berkeley (Universidade da Califórnia), onde eu então frequentava o Seminário de Theory of Literature, dirigido por ninguém menos que Stanley Fish. Mas na San Francisco havia um must: todos os alunos, de qualquer área, que desejassem exercer a docência, tinham obrigatoriamente que fazer a disciplina Reading Specialist.

4.     Contaram-me que, por volta dos 3 anos de idade, eu me instalava na biblioteca  de meu pai, junto à prateleira mais baixa, onde fora colocada, propositalmente, a Coleção do Tesouro da Juventude que fora de minha mãe. Sentada no chão, passava um bom tempo folheando seus exemplares e/ou rabiscando neles, no quieto,  enquanto meu pai la ou escrevia. Se ele ou outra pessoa perguntava o que eu estava fazendo, minhas respostas eram, invariavelmente, "tô lendo" ou "tô isquevendo". Anos mais tarde, folheando essa Coleção, que me acompanhou enquanto morei em Porto Alegre,  fui descobrindo os meus escritos - riscos aleatórios com lápis de cor ou tentativas de desenhar algo ou alguém... Tomo esse quadro como registro concreto de minha iniciação à leitura e à escrita.

5.      O que é Leitura .São Paulo,Brasiliense, 1982.

6.      Enigmas da leitura - lendo com analfabetos e iletrados. Porto Alegre, Território das Artes- minibuks, 2010.