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A felicidade da inquietude – Jane Tutikian

A FELICIDADE DA INQUIETUDE*
por Jane Tutikian **

jana
Umberto Eco (1932 – 2016) foi um dos grandes pensadores contemporâneos, e um intelectual inquieto e múltiplo
Foto: Massimo Valicchia / NurPhoto/AFP


Há coisas que de tão encantadas e distantes que são sequer fazem parte dos sonhos da gente. E, no entanto, acontecem, como quando ficou decidido que o Vice-Reitor Rui Oppermann faria a outorga do título de Doutor Honoris Causa pela UFRGS e eu, uma saudação a Umberto Eco. Confesso que fui tomada pelo susto, pela honra e pela emoção. Como chegar perto de um dos maiores intelectuais do nosso tempo sem passar por uma efervescência de sentimentos? Foi assim. Às 17h do dia 11 de abril de 2014, estávamos lá, na Embaixada do Brasil em Roma, esperando por Eco.

 

De repente, as pessoas se agitaram. Era ele. Sorria para os convidados. Cumprimentos feitos de gestos sóbrios, simpáticos, de quem tinha consciência do que era e era Umberto Eco. A mim, cabia falar sobre ele para ele. Penso que consegui.

 

Como grandes poetas e escritores, Eco buscou no menino Umberto as razões que fizeram dele o homem que foi, e fez desse encontro momentos de afeto, feitos de um olhar condescendente, humorado e orgulhoso. Os avós tiveram importante influência na sua vida. O avô era um leitor voraz e, quando morreu, o menino descobriu sua caixa de livros no porão da casa. A avó materna, por sua vez, trazia para o neto, semanalmente, da biblioteca da cidade, três ou quatro volumes. Dela veio o gosto pela leitura. Da mãe, o gosto pela escrita e os primeiros exercícios de estilo. As aventuras proporcionadas pelos três foram tão prazerosas e estimulantes para o menino que, mais do que ler e brincar de escritor, produzia o livro, ilustrava, fazia a capa. “Óbvio”, diz Eco, “que, depois de algumas páginas, abandonava a empresa. Assim fui, naquela época, autor apenas de grandes romances inacabados.” É na primeira parte de Como Escrevo (2003) que Eco expõe as memórias de seus escritos inaugurais. Adulto, seus primeiros trabalhos voltaram-se para a estética medieval, sobretudo os textos de São Tomás de Aquino.

 

Foi a partir da década de 60, que se lançou ao estudo das relações entre a poética contemporânea e a pluralidade de significados, do que resulta Obra Aberta (1962). Ainda nesta década, Eco destacou-se pelas reflexões sobre a cultura de massa, em especial nos ensaios de Apocalípticos e Integrados (1964). Nos anos 70, passou a tratar quase que exclusivamente da semiótica, produzindo importantes textos, segundo pressupostos buscados em filósofos como Kant e Charles Peirce. São notáveis os ensaios de As Formas do Conteúdo (1971) e o livro Tratado Geral de Semiótica (1975). Como consequência de seu interesse pela semiótica e pela estética, Eco passou a trabalhar sobre a cooperação interpretativa dos textos por parte dos leitores. Lector in Fabula (1979) e Os Limites da Interpretação (1990) são marcos dessa produção.

 

Para além da carreira universitária, aos 48 anos, publicou o famoso O Nome da Rosa (1983), um mistério intelectual que combina semiótica, ficção, análise bíblica, estudos medievais e teoria literária. A obra inaugural do suspense erudito. Os anos seguintes foram de ensaios, trabalhos acadêmicos e romances aclamados pela crítica. Na verdade, foi um dos poucos autores que conseguiram conciliar o trabalho teórico-crítico com produções literárias, exercendo importante influência nos dois campos.

 

Para Umberto Eco, na criação, não existe um caminho único, aliás esta foi sua grande recusa. Para ele, pode-se escrever um romance a partir de uma pesquisa ou um ensaio. Foi o caso de O Pêndulo de Foucault (1989), a conspiração de sociedades secretas com intenções de governar o mundo, que nasceu de uma teoria. Baudolino (2002), por sua vez, resultou de ideias elaboradas em torno da falsificação. Assim, segundo o autor, a invenção pode produzir a realidade e o contrário também acontece. Depois de escrever O Cemitério de Praga (2011) — onde a única figura inventada é o protagonista Simone Simonini, provando que basta falar de algo para esse algo passar a existir —Umberto Eco teve a ideia de elaborar uma teoria, que resultou no livro Construir o Inimigo (2011). Significa dizer que nada impede também que uma teoria nascida de uma obra de ficção redunde em outra ficção.

 

Reconhecendo um recuo para a narrativa linear e clássica, afirma o escritor: “Contar uma história que emocione e transforme quem a absorve é algo que se passa com a mãe e seu filho, o romancista e seu leitor(...) A força da narrativa é mais eficaz que qualquer tecnologia.” A literatura, portanto, resiste. “Sinto-me mal dentro deste tempo e só posso experimentar compreendê-lo escrevendo para fugir ao mal-estar.” Número Zero (2015), seu último romance, corrobora essa afirmação. Para Eco, a abundância de informação irrelevante e a perda de memória do passado é um dos grandes problemas do nosso tempo: “Se a memória é a alma, diminuir muito a memória é diminuir muito a alma.”


Nesse sentido, a escrita é um ato de amor que se quer eterno: “É exatamente como você espera que seus filhos sobrevivam a você, e que se você tem um neto que ele sobreviva a seus filhos.” Um sentido de continuidade que Umberto Eco tem assegurado pela forma como explorou a dialética entre os direitos do texto e os do leitor. Pela postulação de que “o texto ainda representa uma presença reconfortante, um ponto ao qual podemos nos agarrar”. Pela visão multidisciplinar sobre os saberes do mundo. Pela qualidade da ficção. Pela propriedade das ideias. Não! Não há morte possível para quem tanto ofereceu ao mundo! Não para o homem, filho do menino, que descobriu que “a verdadeira felicidade é a inquietude” e que tanto nos inquietou.

 

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* Texto originalmente publicado em ZERO HORA, Caderno PrOA 27/02/2016 –
** Escritora, Profa. de Literatura, atual Diretora do Instituto de Letras da UFRGS. A autora autorizou a transcrição desse texto no site CELPCYRO.