Guilherme Castro *
Desde o lançamento de Boa Ventura(CM, 14 min) em julho de 2015, as apresentações - até agora em salas e eventos em Porto Alegre, interior do RGS e São Paulo - têm provocado debates aprofundados sobre os modos do cinema expressar a vida interna dos personagens a partir das imagens que produz das aparências externas das coisas. A literatura e o cinema (posterior e subsidiário) se aproximam na dramaturgia, mas diferem na forma de narrar. Uma das principais diferenças é que no cinema não há possibilidade de fluxo de consciência, pois a cada ideia correspondem imagens e sons, desde que possíveis de serem produzidos (e sempre com custos).
As imagens mostram corpos em ação no plano, mas não os pensamentos e sentimentos que cada um leva em si. Essa incerteza, limite e potência, é o que torna a narrativa cinematográfica tão poderosa. O tema é antigo, porém ainda muito atual.
Em Porteira Fechada (romance de Cyro Martins), personagens aprofundados em histórias, situações dramáticas, premissas e contextos muito bem fundamentados favorecem o cinema que não quer mostrar mas revelar emoções e motivos bem guardados por debaixo das superfícies refletidas pela luz.
Na transposição de todo texto escrito para imagens e sons projetados surge uma obra nova e, embora menos que o livro, sempre aberta. As adaptações possíveis são infinitas como as leituras dos livros adaptados. Porém, enquanto no texto lido o trabalho criativo de imagem é quase todo do leitor, no cinema, oferecemos a cena muito mais acabada (e menos rica). Um paradoxo conhecido é que a literatura é mais visual que o cinema (cada leitor cria em sua mente um universo visual completo), assim, o filme adaptado quase sempre é uma diminuição da literatura (especialmente de um romance para um curta). Por isso, as filmagens dos livros favoritos geralmente são rejeitadas pelos leitores. Filmar a partir de um livro é sempre uma ousadia e um risco grande; filmar um clássico, ainda mais. A decisão de adaptar Porteira Fechada, obra e autor que conheço há bastante tempo, foi consciente para o estilo de cinema pretendido.
Imagino que a maioria dos leitores ainda não tenha assistido ao curta-metragem, adaptado de Porteira Fechada (1944), que narra o trecho da história em que a família Guedes chega à casa dos primos na cidade de Boa Ventura (trouxe para o título do filme uma ironia do texto de Cyro Martins, porque a desventura dos personagens é grande). Desde o início, busquei orientar o trabalho da câmera pela construção visual das relações incertas, repletas de interesses e passados escondidos, incompreensões e sentimentos contidos. As aparências externas nunca são exatas, mas figuram o que está dentro; aos conflitos externos correspondem uma infinidade de possíveis conflitos internos, não explicitados, mas visíveis - os dilemas dos personagens. O que aparece na cena que queremos são pistas dadas ao espectador daquilo que realmente importa, do lugar das emoções mais profundas e veladas. É o lugar do trabalho para criar a forma aparente da cena em imagens e sons (não inferidos). A essas alturas, nos debates, percebemos essa similaridade entre a psicanálise e a literatura (matérias que conheço bem pouco) e o cinema, com o qual tal trabalho.
Assim como as pessoas reais, os bons personagens são dúbios, complexos, contidos e oblíquos no modo de falarem, agirem, vestirem-se e moverem-se. A câmera identificada com olhares de personagens pulsantes e plausíveis pode construir uma cena não realista, cujas imagens não sejam nem meras ilustrações do texto, tampouco enquadramentos burocráticos para o trabalho de atores. A produção, quando compreende e constrói as imagens e sons a partir de personagens com vida interior, oferece um olhar expressionista, errático e fragmentado, portanto, muito mais atraente e até mesmo ‘real’ ao público.
São intenções de cinema, ideias em abstrato, porque sempre depende do efeito causado no espectador. Os debates sobre filme e livro, cujo conteúdo tento relatar aqui, são após a exibição e sob o efeito do filme, assim, esse texto é menor do que as possibilidades de leituras já percebidas.
Alguns personagens foram suprimidos, outros cresceram, não são as mesmas cenas do livro, tampouco as mesmas falas, e a ordem dos acontecimentos também foi alterada. Numa adaptação é preciso técnica e coragem para transformar. Maria Helena e Cláudio Martins, desde o primeiro instante, demonstraram não apenas saber e esperar essas diferenças formais, mas também creditaram total confiança e liberdade ao meu trabalho (a bem da verdade, a influência da trilogia do gaúcho a pé e o estilo de cinema proposto já apareciam de modo pronunciado em outro filme meu, Terra Prometida, CM de 2006, adaptação do conto homônimo de Taylor Diniz).
Essa jornada de exibições e debates já autoriza dizer que Boa Ventura, de forma atualizada (recorte, recriação contemporânea), consegue narrar em filme a história da família Guedes, e retratar o universo de Cyro Martins em uma obra nova e visão própria.
Não cabe a mim uma análise do filme Boa Ventura, mas nos debates são notados os desempenhos artísticos e técnicos da equipe em vários aspectos do cinema que fizemos, nos detalhes trabalhados com elenco, fotografia, arte, som, música, montagem e produção. Há erros e acertos, como em qualquer filme. Assim, além de tratar com uma das mais importantes obras da nossa literatura, sobretudo, a satisfação está em colocar ideias, propostas e conteúdo de arte no trabalho de contar histórias no cinema.
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*Roteirista e diretor do filme Boa Ventura (CM, 14 min, 2015, adaptação de Porteira Fechada, 1944, de Cyro Martins), Guilherme Castro é cineasta e jornalista, atua como diretor, roteirista e produtor, além de professor de televisão e cinema. Entre os principais trabalhos anteriores, estão Becos (2003), Terra Prometida (2006) e Transversais(2008). É doutorando em Comunicação (em Audiovisual) pela Universidade Anhembi Morumbi/SP.
*Ficha técnica de Boa Ventura: elenco: FERNANDO KIKE BARBOSA, PATSY CECATO, YONARA KARAM, JULIA BACH, EDUARDO CARDOSO, ANA PAULA SCHNEIDER , EDUARDA BACKES KOCHE roteiro e direção GUILHERME CASTRO produção ALETÉIA SELONK produção executiva GRAZIELLA FERST direção de produção GINA O´DONNELL direção de fotografia MAURÍCIO BORGES DE MEDEIROS direção de arte ADRIANA NASCIMENTO BORBA desenho e edição de som LEO BRACHT música original HIQUE GOMEZ montagem ALFREDO BARROS realização OKNA PRODUÇÕES
Guilherme Castro no set de Boa Ventura
João Guedes (Fernando Kike Barbosa), a esposa, Maria José (Yonara Karan), e a filha (Júlia Bach)
Veja demais matérias sobre o evento PORTEIRA FECHADA E BOA VENTURA: INTERAÇÃO DO ROMANCE DE CYRO MARTINS E DO FILME DE GUILHERME CASTRO: www.celpcyro.org.br
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