Do mito à verdade científica* - Cyro Martins |
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............................................................................................................................................. Os procedimentos curativos dos sacerdotes-médicos de Esculápio não se diferenciavam muito dos do feiticeiro dos povos primitivos, apenas eram mais suaves. Nessas espécies de sanatórios — "belíssimos edifícios de pedra com peristilos sombreados, alamedas de oliveiras e grandes pátios com fontes" — executavam-se rituais de cura, cujos efeitos raiavam muitas vezes pelo milagre. Era a sugestão que curava. Dentre os segredos do universo, o que sempre mais cativou a curiosidade do homem foi o da sua própria essência. Mas paralelamente ao fascínio pelo mundo interior, andou e continua andando o temor de levantar os véus que encobrem esse mistério. Assim, se não fossem as doenças, e em especial as doenças mentais, possivelmente o homem não se tivesse obrigado a conhecer-se a si mesmo. O primitivo, projetando seus próprios impulsos, que eram bons e eram maus, povoou o mundo de seres imaginários, feitos à sua imagem e semelhança. Espíritos benéficos e demônios regiam os fenômenos da natureza e o destino das criaturas. Em consequência, para o primitivo, toda doença era mental, no sentido de que era espiritual, provocada por "espírito". Seus sistemas de cura consistiam em atitudes, gestos, ameaças, imprecações, capazes de assustar e desalojar do corpo do paciente o espírito causador do mal. O advento do monoteísmo não alterou a concepção médico-psicológica dos povos primitivos. Assim, para a "psiquiatria bíblica" as doenças mentais encontravam sua causa na ira do Senhor. Para os hindus, que possuíam um sistema médico detalhado e completo, as enfermidades mentais permaneciam sob o domínio da metafísica sacerdotal. Muitos séculos transcorreriam até que surgisse o primeiro homem que, como médico, iria assumir uma atitude racional em face da doença e do doente. Esse, foi Hipócrates, saído das filas dos sacerdotes-médicos cultores dc Esculápio. Apesar de sua origem, o gênio o guiou para que fosse uma das culminâncias intelectuais do seu século, ue se iniciou com Tales, continuou com Anaxágoras, culminou com Sócrates, Platão e Aristóteles, Ésquilo e Sófocles, pode ser sintetizado pelo nome de Péricles e passou à história como o século mais brilhante da Grécia. Hipócrates introduziu um novo sistema de estudar enfermidades, declarando-se desconforme com a teoria sobrenatural das doenças e sustentando que estas se originavam no próprio corpo do paciente e que tinham, portanto, uma origem natural. Assim, conceituava que a epilepsia não era nem mais nem menos sagrada que qualquer outra doença e que provinha, como as demais, de uma causa natural. A importância de Hipócrates consistiu, sobretudo, no empenho que pôs para separar a Religião da Medicina e em incorporar a esta o tratamento das enfermidades mentais. Na etiologia destas, destacava diversos fatores: alterações anatômicas do cérebro, ação de humores corporais e também os estados emotivos. Entretanto, a sua terapêutica era precária, ainda de procedência sacerdotal. Quanto à histeria, não a concebia como enfermidade mental, senão como um achaque físico próprio das mulheres, ocasionado pelos deslocamentos do útero, considerado órgão migratório. Mas nem todos os médicos da era greco-romana se conformariam com a terapêutica de Hipócrates. Celso e Ramam recomendavam "trabalhar sobre a mente". E é significativo que no Prometeu, de Ésquilo, um personagem proclame: "Não sabes então, Prometeu, que as palavras são os médicos de um ânimo perturbado?" Areteus procurava adaptar-se às distintas peculiaridades de cada paciente. Com o Cristianismo, a cura por meio de amuletos e encantamentos foi substituída pela cura por meio da palavra. E os apóstolos fundavam sua popularidade curando possessos com as falas sagradas. Posteriormente a Igreja avocou a si o direito e o poder exclusivo de exorcisar o diabo causador de sofrimentos. Os espíritos malignos foram substituídos pelo demônio. A Psicologia Médica outra vez deixou de existir, mas as psicoses e as neuroses aumentaram. Trasnformada a Psiquiatria em Demonologia, em lugar dos sitomas das doenças mentais, estudavam-se sinais da possessão demoníaca. A reação contra a Demonologia começaria com Paracelso (1493-1541), que foi o primeiro a atacar a superstição e o autoritarismo clerical da Idade Média, no referente à Medicina, tendo, inclusive escrito um livro sobre doenças mentais. Rechaçou a Demonologia e afirmou a causa natural dos distúrbios mentais, atribuindo-os a alterações insalubres sofridas pelo espírito vital. Mas a influência maior de Paracelso no desenvolvimento da Psicologia Médica haveria de efetivar-se através de caminhos obscuros, os caminhos da tradição popular, que tiveram origem na sua crença delirante nas propriedades curativas do ímã. Posição semelhante à de Paracelso contra a Demonologia, assumiu Cornélio Agripa, sábio, alquimista e filósofo (1486-1533). Mas a luta de oposição à crença na ação morbígena de Satanás continua. Em 1665 Reginald Scot publicou uma obra na qual sustentava que os pactos e contratos das bruxas com os diabos não passavam de imaginações. Mas foi John Weyer, discípulo de Agripa, que demonstrou, com argumentos clínicos, a falácia da Demonologia. Foi o primeiro médico que se interessou intensamente pelas doenças mentais, separando a Psicologia da Teologia, e o conhecimento empírico do espírito humano, da fé na perfeição da alma. Destaca-se o desassombro de John Weyer, porque os médicos em geral eludiam esses terríveis problemas, temerosos da reação da Igreja. Não obstante, pouco a pouco a valorização dos afetos se ia afirmando na consideração causal da histeria. Assim, em 1615 Charles Lepois sustentava que o papel do útero tinha terminado e que eram os nervos que dominavam a cena, tal como o demonstravam os fatos e a experiência. Logicamente, tais ideias suscitaram violentas controvérsias, até que obtiveram o apoio consagrador de Sydenham que granjearia o justo apreço de seu mérito por parte de Briquet. Hoffman e Roulim, na segunda metade do século xvIII, afirmariam a existência da histeria masculina. Mais alguns anos e entraria no cenário da história da cura mental a figura singular de Franz Anton Mesmer. Nasceu, em 1734, estudou Teologia, Filosofia, Medicina e Música, tocando apreciavelmente piano e violoncelo. Tendo-se casado com a viúva dum Conselheiro da Corte, "senhora de mais de trinta mil florins", sua casa nos arredores de Viena era um refúgio de artistas, frequentada nada menos que por Haydn, Mozart e Beethoven, entre outros. Um dia tem a sua curiosidade atraída pela história, narrada talvez em tom anedótico, que lhe conta um amigo, o padre jesuíta Hell, o qual, por ser astrônomo, fora procurado por uma forasteira que estava de passagem em Viena, com o fim de obter dele um pedaço de ferro imantado, cortado de molde a poder ser levado com comodidade sobre o epigástrio, pois esse era o seu infalível remédio para as cãibras de estômago de que sofria. Mesmer, usando o mesmo método, obteve êxito num caso. Acreditou que o fluído magnético, passado através do metal, havia revivificado os tecidos. Pensou haver encontrado a energia magnética através da qual os homens entram em contato com os corpos celestes. Nessa base, criou toda uma teoria e passou o resto de sua vida tentando adaptar os fatos às suas hipóteses. Intentou e logo acreditou haver transmitido a propriedade magnética a objetos, a árvores, à água do seu açude, aos sons do seu violino. Quando tocava em seus pacientes, estes se encolhiam e tremiam violentamente. Para ele, a crise significava a passagem do magnetismo pelo corpo. Sem crise não havia cura. E logo verificou que, mesmo sem nenhum objeto imantado em suas mãos, transmitia o fluido planetário. E posteriormente comprovou que podia prescindir de tocar no paciente, bastando a sua simples presença para curá-lo. Em face de certos fracassos, porém, estabeleceu a necessidade de confiança e crença no médico por parte do paciente para que este se beneficiasse com o tratamento. A este laço afetivo denominou "rapport". Apesar disso, Mesmer não pôde compreender a natureza de sua ação curativa e seguiu aferrado à teoria magnética. A imaginação não desempenhava para ele nenhum papel. Se tivesse percebido que sua influência não era física, mas sim mental, esta sugestão era o que curava, teria compreendido o que lhe passava. Naturalmente, não nos seria possível seguirmos aqui toda a trajetória novelesca de Mesmer, com suas vitórias, suas quedas e o seu final melancólico. A história que nos interessa neste momento é a da psicoterapia. Estava destinado, porém, a um continuador de MESMER, o Marquês de PUYSÉGUR, o descobrimento de um fenômeno psicológico que teria importância fundamental na gênese da Psicanálise. Certa vez um paciente caiu adormecido em seus braços. PUYSÉGUR lhe ordenou que levantasse, abraçasse o olmo que havia em frente à sua casa e despertasse. Assim sucedeu. Interrogado, o paciente nada soube dizer do que se lhe tinha passado. Este é o primeiro caso conhecido, na literatura médica, de sono hipnótico. As investigações continuaram. Realizaram-se operações sem dor durante o sono mesmérico. O termo hipnotismo não havia sido criado ainda. Foi BRAID (1795-1860) que, tendo-se dedicado à investigação do sono mesmérico na cura de pacientes, evidenciou o papel da sugestão no mesmerismo e o "fenômeno da dualidade de consciência", isto é, em estado mesmerico os paciientes faziam, diziam e aprendiam coisas que acordados ignoravam. A esse fenômeno BRAID denominou Hipnose. .......................................................................................................................................................... * Fragmentos do ensaio "Do mito à verdade científica". IN: Cyro Martins. Do mito à verdade científica - Ensaios Psicanalíticos. Porto Alegre, Editora Globo, 1964. |