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A amizade que nasceu num divã E-mail
Escritos Recolhidos

 

             


                                                                                                                                      Abrão Slavtzky *


              Dez anos após ter concluído a primeira análise, e já de volta ao Brasil, viajei a Buenos Aires. Havia marcado hora com Fernando Ulloa, analista conhecido na cidade, e fui ao seu divã durante uma semana. Logo percebi que tinha um analista experiente, capaz de frases desconcertantes.

               Numa das conversas, disse que me analisar na Argentina era fácil, mas, em Porto Alegre, não. Feito o desafio, decidi procurar um psicanalista na capital gaúcha, e não foi difícil escolher Cyro Martins.

               Escritor, analista, que depois da análise se transformaria num amigo com quem faria um livro. Comenta-se que cada paciente tem o analista que merece, e, se isso for verdade, tive sorte.

               Quando procurei o autor da trilogia do gaúcho a pé, que à época não havia lido, expus o desejo de análise. Ele achou que talvez não fosse preciso, pois tinha uma boa família e estava bem na profissão.

               Afirmei, então, que, por não precisar, eu desejava, e contei um pouco das sessões com o Ulloa e de seu desafio. As primeiras conversas foram frente a frente, estudei-o, namorei o divã, e logo deitei, relaxei e falei livremente. Foi um tratamento que durou oito meses, com conversas marcantes, num clima descontraído, quase sempre bem-humorado.

               A primeira análise ajudou nessa segunda experiência, uma aventura que iria gerar uma das melhores relações afetivas que já vivi. A palavra aventura é como caracterizo a relação analítica, pois é uma viagem ao mundo interno, que passa por um país distante chamado infância. E tudo vivido no presente desse encontro estranho/familiar com alguém desconhecido que é o analista.

               Não sei se pela idade e experiência do Cyro, tudo ocorreu de forma rápida e conseguimos estabelecer em pouco tempo um vínculo intenso.

               Quarenta anos nos separavam, mas quase tudo nos aproximava, a começar pela                arte e por uma visão mais rebelde do mundo. Aliás, decidi procurá-lo, entre outros motivos, porque ele havia apoiado publicamente um historiador com uma visão crítica do conservadorismo.

               Eram quatro encontros por semana, em que contava as fantasias, os sonhos, as angústias e os planos. Não sei se algum dia ele dormiu, se eu o cansei, e escrevo isso porque um colega tentou fazer com que desistisse da escolha contando que Cyro dormia durante as sessões. É, são as pequenas maldades da vida cotidiana. Por sinal, o psicanalista argentino Horácio Etchegoyen, em um livro de entrevistas sobre a sua vida e a psicanálise, relata que às vezes o analista dorme um pouco, mesmo que não seja o mais indicado. Enfim, nenhum analista é perfeito, e ainda bem que assim seja. Nunca me preocupei se o Cyro dormia, mas, se ocorreu, houve discrição.

               Numa das sessões, vivi um episódio desconcertante, um momento precioso. Vivências como esta fazem parte dos melhores momentos da análise, em que algo novo ocorre que muda a vida ou ao menos a movimenta mais. Falava sobre a condição de psicanalista, ligado à formação na Argentina, e expunha os motivos por que não entrei na Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre. Esclareço que é uma instituição ligada à Associação Psicanalítica Internacional (ipa). Em um momento ele me disse: “Porque na nossa sociedade...”, e foi aí que, pela primeira vez, levantei um pouco a voz indignado, apartando que não era nossa sociedade, e sim a dele. Era um psicanalista que não integrava sua sociedade psicanalítica, e como tal desejava ser reconhecido. Em parte, foi porque me sentia discriminado, não estava identificado com sua instituição.

               Minha analista e um dos supervisores argentinos haviam rompido por questões ideológicas com a ipa. Foi algo que também me servira para brigar, pela primeira vez, com Cyro, e foi uma reação persecutória comum.

               Na hora fiquei aguardando suas palavras para seguir o confronto, é claro. Quando o velho analista, então, falou: “Creio que meu desejo era que tu fosses da minha sociedade, por isso disse nossa”.

               Preparado para a guerra, armado até os dentes, fui desarmado pelas palavras do analista de Cerro do Marco. Sorri, pois ele, ao referir-se ao desejo de uma aproximação profissional entre nós, fez com que ficasse feliz. Busquei a guerra, e o analista, ao se interpretar, me ofereceu a paz, e fiquei estarrecido. Não só me reconhecia, como ficaria contente com a entrada na sua sociedade. A palavra sociedade também tinha a ver com a nossa relação, a sociedade que já formávamos na análise e que nos levaria inclusive a produzir o livro Para início de conversa, após a análise.

               O importante é salientar como uma situação de desconfiança, de um conflito eminente, foi resolvida através de uma frase bem-humorada.

               Ele interpretou seu desejo e fiquei desarmado. Lembro com satisfação dessa passagem, pois Cyro falou de forma descontraída, como se nem estivesse interpretando, o que é mais eficaz.

               De quase um ano em que estive no seu divã e de centenas de frases que escutei, foi esse o momento que simbolizou nossa relação. O espanto foi pela forma suave como resolveu uma situação de tensão.

               Naquele dia, mais uma vez percebi o quanto a espirituosidade era o antídoto das querelas tediosas. Naquele momento, a paranoia perdeu uma batalha, pelo que até hoje agradeço. Se ele não tivesse a segurança que os anos lhe haviam dado, poderia seguir o caminho mais fácil do silêncio. Ou poderia fazer uma interpretação, esquivando-se do seu ato falho. Fiquei feliz com a naturalidade com que falou do seu desejo, uma mudança em relação à primeira análise. Aprendi, ali,que o peso da psicanálise poderia diminuir, que situações tensas se beneficiam da leveza.


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* Abrão Slavutzky é psicanalista e escritor. Escreveu, com Cyro Martins, Para início de conversa. Porto Alegre, Movimento, 1990.

 

 

 

 

 

 

 

Dez anos após ter concluído a primeira análise, e já de volta ao Brasil,

viajei a Buenos Aires. Havia marcado hora com Fernando Ulloa, analista

conhecido na cidade, e fui ao seu divã durante uma semana. Logo

percebi que tinha um analista experiente, capaz de frases desconcertantes.

Numa das conversas, disse que me analisar na Argentina era

fácil, mas, em Porto Alegre, não. Feito o desafio, decidi procurar um

psicanalista na capital gaúcha, e não foi difícil escolher Cyro Martins.

Escritor, analista, que depois da análise se transformaria num amigo

com quem faria um livro. Comenta-se que cada paciente tem o analista

que merece, e, se isso for verdade, tive sorte.

Quando procurei o autor da trilogia do gaúcho a pé, que à época

não havia lido, expus o desejo de análise. Ele achou que talvez não

fosse preciso, pois tinha uma boa família e estava bem na profissão.

Afirmei, então, que, por não precisar, eu desejava, e contei um pouco

das sessões com o Ulloa e de seu desafio. As primeiras conversas foram

frente a frente, estudei-o, namorei o divã, e logo deitei, relaxei e falei

livremente. Foi um tratamento que durou oito meses, com conversas

marcantes, num clima descontraído, quase sempre bem-humorado.

A primeira análise ajudou nessa segunda experiência, uma aventura

que iria gerar uma das melhores relações afetivas que já vivi. A palavra

aventura é como caracterizo a relação analítica, pois é uma viagem ao

mundo interno, que passa por um país distante chamado infância. E

tudo vivido no presente desse encontro estranho/familiar com alguém

desconhecido que é o analista.

Não sei se pela idade e experiência do Cyro, tudo ocorreu de forma

rápida e conseguimos estabelecer em pouco tempo um vínculo intenso.

Quarenta anos nos separavam, mas quase tudo nos aproximava,

a começar pela arte e por uma visão mais rebelde do mundo. Aliás,

decidi procurá-lo, entre outros motivos, porque ele havia apoiado publicamente

um historiador com uma visão crítica do conservadorismo.

Eram quatro encontros por semana, em que contava as fantasias, os sonhos,

as angústias e os planos. Não sei se algum dia ele dormiu, se eu o

cansei, e escrevo isso porque um colega tentou fazer com que desistisse

da escolha contando que Cyro dormia durante as sessões. É, são as pequenas

maldades da vida cotidiana. Por sinal, o psicanalista argentino

Horácio Etchegoyen, em um livro de entrevistas sobre a sua vida e a

psicanálise, relata que às vezes o analista dorme um pouco, mesmo que

não seja o mais indicado. Enfim, nenhum analista é perfeito, e ainda

bem que assim seja. Nunca me preocupei se o Cyro dormia, mas, se

ocorreu, houve discrição.

Numa das sessões, vivi um episódio desconcertante, um momento

precioso. Vivências como esta fazem parte dos melhores momentos da

análise, em que algo novo ocorre que muda a vida ou ao menos a movimenta

mais. Falava sobre a condição de psicanalista, ligado à formação

na Argentina, e expunha os motivos por que não entrei na Sociedade

Psicanalítica de Porto Alegre. Esclareço que é uma instituição ligada à

Associação Psicanalítica Internacional (ipa). Em um momento ele me

disse: “Porque na nossa sociedade...”, e foi aí que, pela primeira vez,

levantei um pouco a voz indignado, apartando que não era nossa sociedade,

e sim a dele. Era um psicanalista que não integrava sua sociedade

psicanalítica, e como tal desejava ser reconhecido. Em parte, foi porque

me sentia discriminado, não estava identificado com sua instituição.

Minha analista e um dos supervisores argentinos haviam rompido por

questões ideológicas com a ipa. Foi algo que também me servira para

brigar, pela primeira vez, com Cyro, e foi uma reação persecutória comum.

Na hora fiquei aguardando suas palavras para seguir o confronto,

é claro. Quando o velho analista, então, falou: “Creio que meu desejo

era que tu fosses da minha sociedade, por isso disse nossa”.

Preparado para a guerra, armado até os dentes, fui desarmado pelas

palavras do analista de Cerro do Marco. Sorri, pois ele, ao referir-se ao

desejo de uma aproximação profissional entre nós, fez com que ficasse

feliz. Busquei a guerra, e o analista, ao se interpretar, me ofereceu a paz,

e fiquei estarrecido. Não só me reconhecia, como ficaria contente com a

entrada na sua sociedade. A palavra sociedade também tinha a ver com

a nossa relação, a sociedade que já formávamos na análise e que nos levaria

inclusive a produzir o livro Para início de conversa, após a análise.

O importante é salientar como uma situação de desconfiança, de um

conflito eminente, foi resolvida através de uma frase bem-humorada.

Ele interpretou seu desejo e fiquei desarmado. Lembro com satisfação

dessa passagem, pois Cyro falou de forma descontraída, como se nem

estivesse interpretando, o que é mais eficaz.

De quase um ano em que estive no seu divã e de centenas de frases

que escutei, foi esse o momento que simbolizou nossa relação. O

espanto foi pela forma suave como resolveu uma situação de tensão.

Naquele dia, mais uma vez percebi o quanto a espirituosidade era o

antídoto das querelas tediosas. Naquele momento, a paranoia perdeu

uma batalha, pelo que até hoje agradeço. Se ele não tivesse a segurança

que os anos lhe haviam dado, poderia seguir o caminho mais

fácil do silêncio. Ou poderia fazer uma interpretação, esquivando-se

do seu ato falho. Fiquei feliz com a naturalidade com que falou do

seu desejo, uma mudança em relação à primeira análise. Aprendi, ali,

que o peso da psicanálise poderia diminuir, que situações tensas se

beneficiam da leveza.