maluh de Ouro Preto - uma cronista brasileira |
Além da Letra - Depoimentos |
Carmen Maria Serralta *
O nascimento da Semana da Arte Moderna, em São Paulo, e o nascimento de Maluh de Ouro Preto, no Rio de Janeiro, ambos em 1922, sugerem uma coincidência expressiva. Dois acontecimentos relevantes na cultura brasileira, mas em medidas bem diferentes: um com a importância e a repercussão do social, outro com a discrição e a modéstia do individual. Maluh valorizou e pôs em prática dois tópicos comuns à Semana: a renovação nas artes plásticas, já que a sua coleção particular conta a história do Modernismo na pintura brasileira e a Modernidade na literatura na qual se destacou como cronista da época. Maria Luisa de Ouro Preto (conhecida por Maluh), filha de Maria Luisa Rodrigo Octávio San Juan de Ouro Preto e de Affonso Celso de Ouro Preto, é neta, por linha materna, do santanense João Manoel Pereira San Juan. Por essas caprichosas conexões da vida - afetivas, naturais e até mesmo casuais - é que sua valiosa Pinacoteca teve como destino a terra do avô. E o jogo das coincidências e dos acasos as torna quase sempre indecifráveis. Embora houvesse muito que dizer sobre a apaixonada colecionadora das artes visuais, da apreciadora do bom teatro, da mulher aberta para o grande mundo lá fora e o íntimo mundo de seus afetos e de sua rica personalidade, hoje minha aspiração, talvez pretensão, é dar a conhecer outra face de Maluh: a escritora, cronista por excelência, que sabe desenvolver seu tema de forma irrepreensível - ágil, elegante, cheio de graça e humor. Restrinjo-me, pois, à escritora premiada pela Academia Brasileira de Letras, à tradutora (proficiente em cinco línguas) e à cronista à altura dos maiores de seu tempo. Não exagero, basta ter em conta o nome de alguns de seus pares em apenas duas coletâneas: Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Cecília Meireles e Rachel de Queiroz em Vozes da Cidade (de1965); e Carlos Heitor Cony, Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos em Crônicas Exemplares (de 1967). As crônicas de Vozes da Cidade foram escritas para serem lidas no programa literário da Rádio Roquette Pinto, que fez sucesso no Rio de Janeiro, na década de 60, e atraiu milhares de ouvintes. Essas crônicas representavam as vozes mais elevadas e consagradas da crônica brasileira em que a emoção, a observação, a versatilidade, o humor e o lirismo se derramavam sobre os acontecimentos da antiga capital do Brasil. Atributos infalíveis em mais dois livros de crônicas de Maluh: Siri em Noite sem Lua (1959) e Ardentia (1975). Minha intenção nesse texto é juntar tempo, vida e crônica, para tanto me parece oportuno lembrar uma história da Mitologia Grega que fala justamente de um desses elementos: o tempo. E o que logo chama a atenção no vocábulo “crônica”, é observar que ele possui como radical o termo Khronos que significa tempo e também designa um deus da mitologia grega. Khronos, a pedido da mãe Gaia (Terra), não hesitou em cortar o sexo do pai Uranos (Firmamento) e, com esse cruento e decisivo ato, desbloqueou o universo: abriu o espaço, o tempo começou a escorrer e, a partir daí, as gerações se sucederam. Ocorre que antes desse ato, o Céu estava colado na Terra o que não permitia que seus filhos saíssem das entranhas da Terra. Isso motivou o pedido de Gaia, feito a todos os filhos e que foi atendido pelo caçula: Khronos. Assim explica a mitologia grega o início do espaço/tempo e da sucessão das gerações. Muito de leve, toca-se na instigadora noção de tempo, matéria central de filósofos, cientistas, poetas e, a rigor, percebida por todos os homens. Santo Agostinho, com humildade perguntava: que é, pois, o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei; se quero explicá-lo a quem me pede, não sei. Mas voltando à crônica como gênero literário, sua peculiaridade, sua relação com o tempo e o lugar que ocupa nas letras brasileiras, pode-se dizer que ela nasceu ao sabor das circunstâncias no dia a dia da redação dos jornais e revistas, de feitura e consumo imediato. A crônica é, por natureza, efêmera – filha da fugacidade do tempo – destinada, pois, ao rápido esquecimento. O que não a impediu de fazer parte de toda uma tradição literária cultuada por nossos melhores escritores, basta citar Machado de Assis, também cronista. A crônica se aproxima, por um lado, do jornalismo, não só pela origem como pelo forte vínculo com o factual. E, por outro lado, ela também se aproxima do trabalho literário pela inclusão do ingrediente de fantasia e de certo lirismo que a leva à criação interior, portanto ao ficcional. É da condição da crônica, então, participar desses dois mundos. Constituída por uma parte jornalística e outra literária, não é ela nem uma coisa nem outra, mas algo diferente, um terceiro gênero - um híbrido com características próprias de onde extrai toda a sua energia. Curioso é que, justamente por conta desse hibridismo, ela tem sido acusada por muitos de ser um gênero menor, de sofrer de excessiva dependência ao real e, como no jornalismo, de tratar do transitório e circunstancial; e, se cotejada com a alta literatura, percebe-se que é pouco valorizada por não se preocupar com grandes temas, que é superficial e insuficientemente elaborada. No entanto, o que se considera defeito passa a ser benefício, a crer na perfeita definição de Manuel Bandeira quem estabelece um laço crucial entre crônica e vida. Logo, a grande matéria-prima da crônica é a vida. O bom cronista em geral, e Maluh em particular, sente a vida na força de seus instantes e na diversidade infinita dos acontecimentos, experiências e emoções. A partir de fatos e coisas do cotidiano, é que o bom cronista serve-se de um texto breve e simples que não se confunde com o inconsistente ou vazio, mas se quer sensível, ameno e despretensioso. Porque a pretensão da crônica é justamente ser despretensiosa. Maluh de Ouro Preto resume, a meu ver, o melhor da crônica moderna brasileira ao conseguir mesclar com rara intuição a objetividade com a subjetividade, ou seja, quando a habilidade de dar força à notícia focalizada se mistura com a bondade, com a aptidão de extrair da prosa, poesia. Fico tentada a me apropriar da fala do cronista e escritor José Castello quando analisou o trabalho de Rubem Braga. Ele lembra que, para Braga, escrever é sentir. E sentir é se conectar com o presente, com tudo o que ele tem de fortuito, de casual, de imaginoso, de falso. E continuo com Castello, quem afirma que o cronista fez da vida, com todos os seus defeitos, imperfeições e ambiguidades, literatura. Estendo, sem cerimônia, a nossa Maluh de Ouro Preto, as palavras de Castello. Não por acaso uni os nomes dos dois cronistas que foram amigos e, segundo publicação no Jornal O Globo do Rio, em homenagem aos 100 anos do nascimento de Braga, Maluh foi apontada e, em primeiro lugar, como uma das musas do cronista. Nada melhor que excertos de algumas crônicas de Maluh para justificar minha opinião sobre a escritora. A começar por História Triste De Um Cachorro, em que Rubem Braga é um dos protagonistas:
“Eu posso viver cem anos, mas acho que nunca esquecerei o olhar de censura triste que aquele cachorro nos lançou quando o abandonamos na Praia Azêda. Não vão vocês pensar que fizemos uma maldade horrível com o cachorro, a praia é azeda só de nome, na realidade é doce e linda, (…) e não deixamos o cachorro sozinho, mas sim brincando com outros cachorros, mas de qualquer maneira… Bem, vou contar o caso direitinho, desde o começo. Que soubéssemos, o cachorro não tinha nome, e aparentemente não tinha dono, pois uma manhã cedinho, encontrando Rubem Braga na Praia dos Ossos, acompanhou-o até minha casa na Praia do Canto. Evidentemente, temendo pela sorte dos numerosos pés de milho ainda tenrinhos que ornamentam meu jardim, o autor de ‘Pé de Milho’ negou-lhe passagem, fechando-lhe o portão no focinho, o que em absoluto não incomodou o cachorro, que, lépido, saltou o muro baixo e, deitou-se na varanda, como que à espera de alguma coisa. Evidentemente era um cachorrinho que gostava de cronistas, pois além de ter seguido Rubem Braga até minha casa, quando apareci para o café da manhã, levantou-se e, encostando a cara no vidro da janela, começou a ganir insistentemente com o jeito mais implorativo desse mundo. Reprovando Rubem por sua falta de caridade com um cachorrinho, minha amiga Elisa e eu, abrimos imediatamente a porta, e o cachorro, não se fazendo de rogado, entrou,latindo de alegria. O tempo passa, e nessa altura, sem dúvida, o cachorro já encontrou lar, e certamente mãos mais caridosas que as minhas o alimentam e cuidam dele. Espero que não se lembre mais nem de Rubem Braga, nem de minha amiga Elisa, nem de mim, mas eu, cheia de remorso, não posso esquecer que recusei seu carinho amigo”. *** Na única vez em que esteve aqui, na fronteira Brasil-Uruguai, verão de 1958, Maluh escreveu uma crônica intitulada Corso, publicada na imprensa carioca. Curioso é observar a dupla leitura que se pode fazer ao comparar dois tempos: o da crônica escrita em 1958 onde ela olha para trás, e o tempo da leitura que aqui e agora fazemos olhando para o já longínquo 58...
“É claro que domingo de carnaval o cronista sente-se na obrigação de escrever algo a propósito, mas “Iih, que pau!”são capazes de dizer vocês diante do título “Corso”! Isso é coisa antiga, acabada, fora de moda, do tempo do bumba! Na certa vem por aí uma cacetada, uma história saudosista de carnavais de dantes, de antigamente, de outrora, do passado (...). Não, não foi na Avenida Rio Branco, nem (...) no Flamengo, nem ao menos foi no Rio (...) Aonde foi? (...) Foi lá no extremo sul do país, em Sant’Ana do Livramento, cidade gêmea de Rivera no Uruguai, onde a fronteira é no meio da principal praça das duas cidades, e onde a avenida mais importante de cada uma, continua sendo a avenida mais importante da outra, exatamente a avenida onde passa o dito corso internacional, constituído igualmente de santanenses e riverenses, brasileiros e uruguaios. (...) Um Carnaval do qual participou a quase totalidade dos habitantes das duas cidades, sambando nos bailes, pulando na rua, descendo e subindo a avenida no corso, unidos num Carnaval brincalhão, alegre, entusiasmado, sadio, sem maldade, e sobretudo espontâneo, sem o ar de obrigatoriedade que agora caracteriza os festejos carnavalescos no Rio. Um Carnaval, Carnaval mesmo, um Carnaval de antigamente, do passado, do Corso na Avenida Rio Branco.”
*** Para concluir, pinceladas da crônica Noventa Anos, na qual Maluh celebra a comovente história de vida e de amor da avó Genesy com o santanense João Manoel.
“O tempo passa, e hoje ela completa noventa anos de tempo (...) Foi belo, tem sido belo, é belo o tempo de seus 90 anos de lucidez absoluta, de interesse intenso pelo grande mundo em geral, de afeto imenso por seu pequeno mundo particular (...). É bela e jovem sua imaginação de exuberante riqueza, digna de romancistas e dramaturgos (...). É belo seu jeito de ouvir atenta, ou contar, vivendo, interpretando o que diz qual exímia atriz dramática (...). É bela sua memória do passado, sua presença no presente, sua esperança no futuro (...). Foi apaixonadamente amada, e apaixonadamente amou, para sempre venerando a memória do marido prematuramente desaparecido, cuja terrível ausência sem volta não a tornou amarga, maldosa, vazia ou omissa: fê-la simplesmente retirar-se, retrair-se numa dor sem alarde, num discreto luto que até hoje mantém, numa recusa do festivo, luxuoso ou desnecessário. O tempo passa, e hoje ela completa noventa anos de seu tempo. (...) Ela faz noventa anos, é bela, é serena, é feliz. É minha avó”.
---------------- * Escritora e tradutora. Membro da Academia Santanense de Letras
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