O flagrante do ato criador * |
Estante do Autor - Ensaios |
Cyro Martins Os críticos, os psicanalistas dados à pesquisa da elucubração artística, certos ficcionistas e alguns filósofos têm procurado elucidar os mecanismos profundos da produtividade mental no referente à estética. A hipótese mais fecundante que se apresenta parece consistir num processo de características muito especiais que possibilitaria captar, no flagrante do ato criador, a assimilação dos desejos reprimidos por intermédio de símbolos significativos. Entretanto não se explicaria a criatividade, na amplitude de seus elementos concepcionais, redutíveis à tradução em forma conceitual, apelando somente à ação dos desejos reprimidos, o que está de acordo com a teoria psicanalítica do simbolismo, que consiste em substituição inconsciente de ideias, imagens ou mesmo ações por outras representações. O simbolismo origina-se do conflito intrapsíquico. A condição do símbolo é a repressão. O que não é reprimido não necessita ser simbolizado. Entretanto, não se explicaria a criatividade na totalidade de seus elementos concepcionais redutíveis à tradução em forma conceitual, apelando somente à ação dos desejos reprimidos. Assim, penso que, numa relação de integração de todos os componentes da criatividade a essência do processo criativo aconteceria naquela zona de confluência do propósito de conhecer com o propósito de expressar, incluindo a história do modelo gerador, a da competição do amor e do ódio, desde o nascimento. Com efeito, a análise das grandes obras da literatura e da arte em geral demonstra que a emoção inconsciente que as inspirou é tecida pela trama dos antagonismos de Eros e Tânatos. A arte, pois, na conceituação psicanalítica, é expressão de fantasias inconscientes originárias do dualismo instintivo e, como fato psíquico, pertence à categoria da idealidade superior. Eis que atingimos aqui o tópico fundamental da sublimação. Provavelmente não exista uma definição integral de ato criador, esse flagrante vibrátil da transfiguração do pensamento poético em obra de arte ou de especulação em conceito. Talvez seja improfícua a pesquisa formal dessa definição. Talvez se possa levantar a hipótese de que a fabulação, que se multiplicou nas diversidades das formas de arte hoje conhecidas, se transformou numa contingência imprescindível à sobrevivência da espécie, desde que o homem experimentou o primeiro medo, o primeiro ódio, o primeiro sentimento de culpa, e logo o primeiro impulso de reparação. Com efeito, como os sonhos e os sintomas, toda obra de arte está na dependência de uma multideterminação de motivos. Portanto, seu conteúdo fundamental, seus imperativos mais decisivos têm suas fontes geradoras nas mesmas insatisfações que originam os sintomas e os sonhos. Portanto, embora a arte frequentemente exprima uma realidade social em toda a sua exuberância e complexidade, como no Germinal, de Zola, a força que nutre a criatividade é o instinto. A presença dominante na experiência artística pertence a Eros. A propósito, será oportuno recordar aqui a frase de Raul Pompéia, formulada em idos anteriores ao advento da Psicanálise, em 1888, aos 25 anos de idade: “Arte, estética e estesia é educação e instinto sexual”. Se trocarmos a palavra educação por sublimação, teremos um conceito psicanalítico concreto. E mais adiante, nesse mesmo encadeamento de reflexões, encontramos outro fragmento, também pertencente à conferência do Dr Cláudio, personagem de O Ateneu, de Raul Pompéia: “... a arte subjetivamente, o sentimento artístico, nas suas mais elevadas, mais etéreas manifestações, é simplesmente a evolução secular do instinto da espécie.” Sei que a complexidade deste tema requer uma abordagem em múltiplas perspectivas de acordo com os modos de pensar e de elaborar o conhecimento de cada autor. O meu enfoque é o psicanalítico. Deste ângulo, encaram-se as produções artísticas em geral como tentativas de elaboração de situações conflituosas da infância do indivíduo, dos povos e da “jovem humanidade”, usando-se esta expressão com aquele significado abrangente que adivinhamos em Freud de plenitude e incertezas do mundo recém-nascido. Com efeito, quanto mais ampla e entranhada for a base da obra de arte nessas situações conflituosas universais, mais fecundante será a substância de sua matéria-prima e, por conseguinte, mais longa a sua permanência viva no tempo. Dadas as circunstâncias de tempo, deixarei de lado vários outros aspectos do processo ativo da criatividade, tais como a inspiração e a sublimação. Mas não posso deixar de reportar-me ao pensamento humanista de André Green: “É muito importante que a obra de arte seja e não seja real... para que seja verdadeira.” Creio que esse conceito é bastante agudo e abrangente como para explicar a autenticidade do realismo literário. A Psicologia acadêmica do século passado acentuava, como um avanço teórico, a influência do meio, mas era impreciso o seu pensamento, não chegando a esclarecer satisfatoriamente como supunha se processasse a interação indivíduo-realidade-ambiente. Essa compreensão viria a ser contribuição por excelência da Psicanálise, fundamentada nos conhecimentos que estruturam a concepção do superego. É que somente a compreensão das funções dessa instância psíquica nos auxilia a conceber como e de que forma as exigências culturais da coletividade passam aos poucos a ser vividas pelo indivíduo, modelando seu caráter e motivando sua conduta. Nessa concatenação de ideias, chega-se à conclusão de que a vivência do esquema pessoal não apaga o sentimento de pertencer a uma realidade de âmbito mais vasto, o social, e o compromisso estabelecido entre ambas é inerente ao fenômeno da criatividade, principalmente a literária, pelo caráter linguístico do símbolo. E é assim que vemos o escritor, como órgão social, cuja função precípua consiste em elaborar e transmitir, esteticamente, experiências subjetivas e impressões sensoriais provindas do mundo exterior, mas transfiguradas pela projeção. Já no século XIX, Zola definiu a criação artística numa frase simples, que ficou famosa: “A arte é a natureza vista através de um temperamento.” Cinquenta anos depois, Albert Camus sentenciava: “A maior parte da emoção estética é, pois, fabricada pelo nosso eu, e a palavra de Amiel permanecerá sempre justa: uma paisagem é um estado de alma”.
Impression Du Soleil Levant (1873) Quadro de Claude Monet que deu início ao Movimento Impressionista
* Cyro Martins e seus manuscritos Cyro Martins costumava aproveitar os blocos que recebia em Congressos Médicos e em outros eventos para escrever seus textos à mão. Encontrei esse manuscrito num bloco da 39 a. Feira do Livro de Porto Alegre de 1993. Então ele terá escrito entre essa data e o ano em que faleceu, 1995. Cabe aqui observar que ele tinha como princípio publicar quase tudo que escrevia, tão logo achasse que seu texto valia ser impresso. "A gaveta é fatal", dizia, pois considerava que, deixando passar demasiado tempo, se acabava desistindo de publicar. Não creio que tenha ocorrido isso com esse texto. Talvez aqui tenha sido mesmo a fatalidade que se adiantou ...(MHM)
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