Ecos do Encontro CUIDANDO DO CUIDADOR |
Humanismo Médico - Eventos |
Uma das características do Humanismo Médico está em proporcionar ao leitor estabelecer relações significativas entre situações de vida e criações ficcionais tomando como referenciais perspectivas ligadas à saúde. Possibilita-se, assim, além da apreciação da manifestação artística, propriamente dita, encontrar na obra elementos que venham a iluminar aspectos da realidade muitas vezes difíceis de perceber, de compreender, de lidar com eles e mesmo de aceitá-los sob o ponto de vista do profissional da saúde ou do paciente. Daí a importância a mais da arte como enriquecedora e confortadora da alma humana, sendo também uma mestra em despertar e cultivar sensibilidades. Não se trata de usar a arte como pretexto terapêutico, mas como elemento capaz de mobilizar, num processo de interação e de sensibilização, emoções e pensamentos integradores dos indivíduos e grupos envolvidos. Essas são as razões principais de convidarmos a escritora Cristina Macedo a apresentar seu conto "Despertar Depois" e, num segundo momento, porque esse texto se propõe como excelente mote de discussão sobre as relações entre cuidadores e quem é cuidado. (MHM)
DESPERTAR DEPOIS
Aos poucos, consigo abrir os olhos. Tenho o corpo pesado, sobre a cama. Olho primeiro para a direita e, que estranho, não reconheço nada. Antes, havia ali minha cadeira de balanço meio quebrada, e a velha escrivaninha. Vejo, agora, esta cômoda cheia de perfumes, o espelho enorme, e aquela poltrona floral, rasgada. Viro a cabeça: onde estão minhas coisas? Nada aqui é meu. Eu costumava guardar, na estante, uns poucos livros que meu marido me presenteara. Também ela desapareceu. Em seu lugar, um armário todo branco. Jamais gostei de branco em móveis - lembra hospital. Barulho vindo de fora; acho que minha filha deve estar chegando e vai me explicar o que houve com minhas coisas. Alguém entra e vem até a cama. A mulher que agora me chama de mãe, não é minha filha. Quero pedir que não me chame assim, mas não sai nenhum som de minha boca. Tento, tento, tento de novo, e não consigo falar. Só posso olhar para aquela criatura completamente estranha para mim, e chorar baixinho. Ela diz que não devo me emocionar ao vê-la agora, que sempre esteve perto de mim, me cuidou durante esses dias todos em que estive inconsciente. Ah, então estive inconsciente? Todos esses dias? Quantos terão sido? Onde está meu quarto? Onde estão minha filha, minha casa, minha vida? Não posso desesperar assim. Preciso me controlar, e imaginar um modo de sobreviver, até que as coisas fiquem mais claras. Será que estou completamente louca? Será que a mulher a meu lado e este quarto que não reconheço, é que são reais? Não acredito: só fiquei doente, nem sei bem o que houve comigo, mas é certo que não sou louca. Ou será que sou, e não sabia? Fecho os olhos e finjo dormir, para ganhar tempo. Tempo para acalmar meus nervos. Para fazer de conta que isto não está acontecendo. Impossível! Onde está a mulher que se diz minha filha? Ah, sentada aos pés da cama, lendo o jornal. E quem será este homem bonito que entra agora no quarto, e vem em minha direção? Ele fala baixinho, também me chamando de mãe. Viro para o lado, e, novamente, fecho os olhos. Os dois conversam, e estão alegres porque, finalmente, - como eles dizem, - acordei. Estão impressionados com minha magreza: imaginam que perdi mais de dez quilos no hospital. Estranho, porque não noto quase diferença em meu corpo. Talvez tenha perdido uns dois quilos, não mais. Falam também no pai deles, que já está vindo para me ver. Mas, sou viúva há muito; já perdi a conta de quanto tempo. Será que vou acordar a qualquer momento, e isto é um pesadelo? Pode ser. Vai ver que é isto: estou tendo um grande e terrível pesadelo. Preciso despertar. Sinto fome. E agora? Como posso mostrar que preciso comer alguma coisa? Passo a mão pelo estômago, e a mulher se aproxima, perguntando se tenho dor. Sacudo a cabeça, negando. Ela, então, se oferece para trazer uma sopinha. Aceito. Estranha sensação. Estranhíssima. Tomei sopa das mãos de uma mulher que não sei quem é, cercada por dois homens que nunca vi, e que dizem ser, um o meu filho e, outro, o meu marido. Como posso deixar que estranhos cuidem de mim, agora que acordei? A não ser que não tenha acordado.
Passam-se os dias, e se faz a rotina. Minha filha me alimenta, meu filho e meu marido estão sempre presentes. Recebo até visitas, amigas que nunca vi. A aparente tranquilidade não mostra um mínimo da aflição que estou sentindo. Tudo me é estranho, esta não é a minha vida. Por que não morri quando estava no hospital? Essa tortura aumenta a cada novo dia. Começo a arquitetar um plano. Assim que se descuidarem um pouco, dou um jeito de me enforcar. Com o lençol. Não quero mais viver assim. Ninguém sabe quem sou, ou, eu não sei quem eles são, porque não sou mais quem eu era. Sim, a qualquer momento, me mato.
Mais algum tempo se passou. O médico, que me visita uma vez por semana, estava aqui no quarto, um dia, explicando que, agora que eu já sentava na poltrona por algumas horas, deveriam me levar para dar uma volta. Eu só queria dizer que não tinha vontade de ir. Comecei a balançar a cabeça, e quando fui, mais uma vez, tentar falar, balbuciei alguma coisa parecida com um não. Todos me olharam, incrédulos. Continuei repetindo ão, ão ,não, não. E, enquanto repetia, me agitava cada vez mais. Acudiram. Assim que percebi que podia falar sempre mais claramente, comecei a perguntar quem eram eles, e onde eu estava, e como tinha ido parar ali, e o que tinha acontecido comigo, e onde estava minha família de verdade. Olhavam, alternadamente, para mim e entre si, em total espanto. E eu, cada vez mais exasperada, gritava e gritava. Ameacei que iria me matar, se não me explicassem imediatamente o que estava acontecendo. A mulher dizia, mamãe, calma, a senhora sofreu um grave acidente, ficou vários dias em coma, está muito mais magra, abatida, mas, felizmente, está viva. E eu dizia: não sou a mulher que vocês pensam que sou; não sou sua mãe, você não é a minha filha. E nunca tive filho homem. E tem mais, sou viúva, meu marido morreu há anos. Odeio vocês todos, odeio este quarto, que não é o meu, odeio essa vida que vocês estão me obrigando a levar. Quero morrer. Enquanto eu falava e me debatia, o médico fez uma chamada. Em seguida, veio até mim, e segurou com força o meu braço esquerdo, dizendo não se agite. Meu marido me prendeu pelo outro lado. Depois de vários minutos, desisti de lutar, e caí exausta. Só ouvi quando a sirene da ambulância anunciou sua chegada e, alguns momentos depois, senti na veia a picada da enorme agulha.
Despertar depois, para quê? --------------------------- * Publicado na coletânea ARCA PROFANA, Território das Artes Editora, 2009. ------------- Leia Apresentações no evento
|