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A criança irresolvida  E-mail
Além da Letra

 

  • Sobre crianças e a (não)leitura

 

A leitura pede socorro na era da cibercivilização

Nívea Maria Pasinato Desconsi *

 

            A leitura pede socorro na era da cibercivilização ** – título de minha monografia da pós-graduação em Gestão Escolar -, foi um trabalho qualitativo e também quantitativo, pois entrevistei 92 alunos de escolas públicas e privadas, tanto da rede estadual quanto particular de Santana do Livramento (RS). Aplicou-se o questionário estruturado aos alunos do 3º. ano do Ensino Médio, a fim de se descobrir, dentre outras questões pertinentes ao tema, o motivo pelo qual a maioria desgosta de ler quando deixa o Ensino Fundamental.*** Supunham-se alguns contribuintes para esse mundo do des, mas era preciso obter dados para se saber como lapidar a arte de ler. Como na era da cibercivilização tudo é virtual, sente-se o livro impresso um pouco abandonado. Mas, mesmo com esse pequeno abandono, os alunos demonstraram anseio por emoção, necessidade de incentivo para ler. E isso impulsionou este trabalho.

 

            No estudo acerca do valor da leitura, de sua influência e importância cultural na vida do aluno, pôde-se ter mais clareza sobre os diferentes fatores que interferem no processo ensino-aprendizagem; no aprender a ler, no ler para saber, no ler para aprender. Nesse contexto, uma leitura sem compreensão não é leitura. Ler sem compreender é parar na primeira etapa do processo, na decodificação do sinal gráfico. Por isso, a leitura precisa ser inteligente, precisa ser um espaço de interação entre o leitor e o texto lido. E nessa era da cibercivilização, em que a tecnologia avança rapidamente, a leitura pede socorro, pede auxílio na valorização da palavra impressa, no sentido atribuído a ela, em suas funções, no empenho e dinamismo da classe docente em estruturá-la, talvez até incluindo-a no currículo escolar. Já dizia Castro Alves: “Bendito, bendito é aquele que semeia livros; livros a mão cheia e manda o povo pensar: o livro caindo na alma, é germe que faz a palma, é chuva que faz o mar”. Portanto, torna-se inconcebível, pelo menos sob meu ponto de vista, uma escola não valorizar a aula de leitura, uma escola pensar que aula de leitura é perda de tempo. Uma instituição que aceita o inaceitável, que condescende com esse ultraje, não merece respeito nem admiração, nem credibilidade.  

Já que na era da cibercivilização tudo é virtual, o professor, o animador cultural, o orientador, o educador, como se queira denominá-lo, possui tarefa fundamental de não permitir que se abandone o livro impresso. Não que o e-book não tenha valor, mas o livro impresso jamais pode ser esquecido, pelo simples e grandioso fato de que há prazer ao folheá-lo, há um jogo de sedução entre o leitor e o livro, certa intimidade que, somente havendo envolvimento, faz com que o leitor se apaixone por ele. O mundo está robotizado e parece que algumas coisas não podem perder seu valor.  

O incentivo à leitura requer mudanças e cuidados especiais, pois é a partir dela que novos horizontes se fundem, que novas opiniões se formam, que os alunos aprendem a argumentar. É a partir da leitura que os alunos despertam para a vida assimilando novos conhecimentos e aprendem a participar de decisões na sociedade. Uma pessoa que não lê é vazia de ideias, vazia de sonhos, vazia de emoções, vazia de vida.

 

A leitura e sua amplitude no contexto escolar

            Para se chegar ao ato de ler, estuda-se ou entende-se primeiramente o texto como objeto de significação e de comunicação, porque revela sentido e porque é um meio de interação entre autor e leitor, porque é produzido em determinado tempo e espaço, considerado, por isso, histórico, podendo seu discurso ser verbal ou não-verbal. E por meio dessa diversidade de formas é que se deve persuadir o aluno a ler. A leitura, quando atrativa, prazerosa, tem mais chances de se tornar uma necessidade para o leitor. Ler envolve um universo de saberes e não se limita a simples decodificação do texto. Pode-se, no entanto, discordar do que o texto diz, mas jamais se pode desdizer o que ele diz. Além disso, tomando a noção de leitura como processo de atribuição de significados a qualquer tipo de expressão, pode-se ler praticamente tudo. “Dá-nos a impressão de o mundo estar ao nosso alcance; não só podemos compreendê-lo, conviver com ele, mas até modificá-lo à medida que incorporamos experiências de leitura” (Maria Helena Martins. O que é Leitura. Ed. Brasiliense, 1995, p.17).           

            Essa visão de mundo, esse desejo de descobrir o novo, de saber argumentar em diferentes situações, é instigante e desperta o gosto e o interesse pela leitura. Cabe ao professor ser a ponte entre o livro e o aluno. Reza uma das crônicas de Rubem Alves que aquele que lê deve ser um artista, deve surfar sobre as palavras e que, se ele estiver possuído pelo texto, a beleza acontece e o texto se apossa do corpo de quem ouve. Mas, infelizmente, o que se pôde verificar com a pesquisa, é que a leitura nas escolas é quase uma nulidade. Vive-se num mundo de des, desvalorização, desmotivação, desencantamento, “desleitura”. Há deficiência de leitura nas escolas e a leitura se mostra deficiente. Nesse mundo iletrado, as bibliotecas não funcionam em fins de semana, os bibliotecários não são contadores de histórias, são indivíduos tentando disciplinar os alunos, implorando por silêncio, ou apenas guardadores de livros. Faltam mediadores de leitura. Faltam professores mediadores. Mesmo com os dados da pesquisa sendo um tanto insatisfatórios, quero crer nas instituições de ensino, porque acredito no potencial que possuem. E quando me refiro à escola, refiro-me, sem exceção, a todos os elementos que a compõem. 

            Falta de tempo, falta de livros, livros velhos, em mau estado de conservação, falta de ânimo para contar uma história, falta de vontade de ler, falta de verbas para adquirir livros. Esse conjunto de “faltas” são depoimentos relatados pelos alunos, nas respostas aos questionários. Falta muito em uma escola e também falta nada. Tudo é uma questão de organização, de preocupação com a educação. Não se pode permitir que o encantamento ao se contar uma história seja tocado por qualquer uma dessas faltas. Nada justifica a falta de leitura e a falta de incentivo a ela em uma instituição de ensino. O professor mediador deve ser um contador de histórias, encantar seus alunos e inseri-los nesse fascinante mundo, além de ter a missão de, nesse contar, transmitir emoção, diversão e conhecimento, já que a oralidade manifesta-se em diferentes funções sociais ritualizadas pela palavra. Sua leitura oral deve transmitir emoção, como sendo um verdadeiro artista para que essa leitura signifique algo na vida de quem ouve e talvez motive outras leituras. Recordo uma das questões da entrevista que se referia aos sentimentos dos alunos, ou seja, como se sentiam quando seus professores contavam histórias em aula. As respostas foram as mais variadas possíveis: “com sono”, “meio entediado”, “interessado”, “era extremamente agradável”, “costumava refletir sobre elas”, “curiosa sobre as histórias”, “quando eram textos interessantes me sentia muito bem”... Dispostas em gráfico, a maioria das respostas foram satisfatórias. Por isso, os professores devem ser como engrenagens da prensa de Gutenberg criada há mais de 500 anos. Engrenagens capazes de executar uma tarefa essencial, propulsora, complexa, mecanicamente realizada, mas plenamente satisfatória para seu usuário, no caso, o leitor.            

            Carlos Drummond de Andrade dizia que não tinha pretensão de ser mestre em coisa alguma e que conhecia suas limitações. O grande poeta teve a humildade de dizer que não pretendia ser mestre, mesmo sabendo que nunca deixou de sê-lo, e sempre enalteceu a literatura como sendo um modo de capacitar o ser humano em toda a sua essência, por ser a literatura um conjunto da produção intelectual escrita. Ela é a tentativa de o homem-escritor criar uma realidade que possa ser exibida no mundo atual, a fim de modificar as estruturas da sociedade humana.  

            A necessidade da presença do livro literário em sala de aula é incontestável, já que ele é fonte inesgotável de conhecimentos e descobertas, de representatividade do ser humano, do universo. Talvez os alunos não demonstrem interesse por obras literárias devido ao modo como são trabalhadas em sala de aula. Se estudantes vivenciam oportunidades padronizadas de leitura, correm o risco de restringir-se à reprodução mecânica de interpretação, o que, consequentemente, gerará insatisfação e falta de interesse pela leitura. Nesse caso, seguir um sistema: ler, interpretar e receber nota, a partir de fichas de leitura. Nada encantador, convidativo, desafiador, além de não se interpretar a obra literária, sua história, elementos que a compõem, sua representatividade no contexto literário em geral...            

            Ainda acerca do tema, a escritora Martha Medeiros intitula a leitura, em uma de suas crônicas, de Arte Maior e acrescenta: “o que faz com que uma pessoa entenda o que está enxergando e saiba julgar qualidade é, e sempre será, a leitura”, já que, segundo a autora, sem leitura até se pode ir a museus e recitais, mas o ingresso sempre parecerá muito caro, diante do nada que se receberá em troca. (Martha Medeiros, 2001, pág. 147). Impossível, com tanto a acrescentar, existir quem julgue desnecessário ler.            

            É fato que a cibercultura já faz parte da vida de muitos, que há novas tecnologias, recursos, multimeios. Não se pode ignorá-los até porque são ferramentas úteis aos pesquisadores. O que se pode pôr em prática é investigar a veracidade dos textos e aproveitá-los como suporte para o estudo. O que preocupa mestres é justamente o que a geração digitalizada está acostumada a fazer: leituras superficiais quando não, cópias. Esse é o maior desafio a se vencer nessa era de cibercivilização e por isso a leitura pede socorro, porque concorre com esse mundo cheio de atrativos. Há muito a ser feito sobre a crise da leitura na escola, considerada até um círculo vicioso, pois os envolvidos tendem a responsabilizar sempre o outro – ensino, educadores, alunos, família –, quando todos teriam seu tanto de compromisso para superar essa crise. Trata-se de um processo difícil e longo, mas isso não inviabiliza uma transformação da crise em realização da leitura na escola. 

E, para finalizar, nada melhor que citar a charge de Luís Fernando Verissimo, do livro Aventuras da Família Brasil, a qual retrata o inestimável valor do livro impresso e que apresenta o seguinte diálogo entre o neto e o avô: “Tudo o que um livro tem, meu computador também tem, com som e com movimento”. Ao passo que o avô, com perspicácia e com argumento imbatível, responde: “Cheiro de livro é melhor”.  

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* Nívea Maria Pasinato Desconsi é graduada em Letras pela Universidade de Passo Fundo-RS com especialização em Gestão Escolar pela Universidade Castelo Branco - RJ. Atualmente é professora de Português e Redação no Curso Santanna – preparatório para concursos, Pré-Vestibular e ENEM - em Santana do Livramento. 

** Sobre o termo "cibercivilização", liga-se ao livro organizado por meus professores Tânia Rösing, Eládio Weschenfelder e Miguel Rettenmaier, Práticas Leitoras para uma Cibercivilização IV, dos quais também uso o termo "animador cultural".

Ciber = realidade virtual.

Cibercultura = segundo Eládio Weschenfelder, “tecnologia contida no hipertexto do terceiro polo do espírito humano: a cibercultura”.

Assim, creio que Cibercivilização possa ser definida como a população inserida no mundo virtual; e a leitura na era dessa cibercivilização ocupa diferentes formas: da prensa de Gutenberg ao e-book.

*** Veja gráfico ( apresentado pela Profa. Nívea)  com  sugestões de alunos para que tenham mais interesse pela leitura da palavra impressa.