Comemorando o centenário da publicação de Contos Gauchescos, lembramos a figura marcante de Simões Lopes Neto que "pintou um Rio Grande consolidado na sua tradição campeira e patriarcal, na sua feição peculiar de vida, com esteios referenciais básicos na estância. Foi o que fez, num estilo manso como a ondulação das nossas coxilhas, com uma frescura de capim tenro de beira de sanga. Quase um simples escritor municipal, um aficcionado das letras, tornou-se o mais glorioso regionalista do Rio Grande do Sul, depois de morto. Seu nome, hoje, ganhou celebridade nos meios literários do país inteiro e até mesmo em Portugal, onde têm sido publicados contos seus e estudos sobre sua obra, que é reduzida. ( ....)Escrevendo , ou falando, sobre Simões Lopes Neto , ninguém poderá evitar, de boa fé, uma ou mais citações de Augusto Meyer:'Por fatalidade temperamental, o medíocre folclorista acabou em poeta , usada a palavra no sentido lato, pois foi ele em essência o nosso poeta e o momento culminante do nosso regionalismo...'" Cyro Martins, Conferência no I Seminário de Literatura Luso-Brasileira. Pelotas, RS, 1992.
Blau (e Romualdo): Momentos crucial(-ais)
Maria Luiza Armando*
Blau Nunes era do tempo- aquele! - do fio de barba. Pois todos os que se queriam homens tinham barba;e as mulheres, cabelos longos: aos quatorze, quinze anos, se casavam, elas, e – era simbólico - passavam a usarcoque,“morriam para o mundo”. Só aos muito íntimos apareciam “em cabelo”, tais as damas medievais sem toucado. O mais era “china de soldado”, cabelos soltos, lácios por indiáticos, despudoradas;seguiam os guerreiros pelo mundo a fora, lavavam as roupas, imundas da guerra, faziam os comes dos acampamentos, passavam por entre balas, destroços, sangue. Só paraguaias, na guerra essa de triste memória, foram, por vezes, damas. Em geral, eram “chinas de soldado”; e os guerreiros não lhes agradeciam. Blau Nunes conheceu esse tempo. Para ele, que era peão, nem fio de barba não se necessitava. Feudal fidelidade, em contrato que não era nem verbal: era tácito.Igual caso o dos vaqueiros sertanejos, dos meeiros dos sertões, segundo Euclides da Cunha;etimologicamente,nem eram meeiros: um quarto era o seu direito; e que o “quarteiro”,apesar da pobreza, fosse além do que fora apalavrado, não se esperava, nunca. Blau Nunes, no Sul, conheceu esse tempo. Mas todos sabem que o Caipora anda às soltas; e pode que alguém cruze com ele, sem perceber. Se acreditava Blau no Caipora, isso não sei;mas o fato é que, então peão tropeiro, esqueceu-se da guaiaca recheada, dinheiro do patrão, venda de gado. O que acontece então, e que ele narra, é o milagre da vida sobrepondo-se à morte, ao desejo de morte (de puríssimavergonha, de ser mal interpretado); o milagre da esperança removendo o desespero. O cusco e as Três Marias o demovem daquilo quea vergonha, como um raio, lhe sugere. O prêmio – o prêmio dele - é a guaiaca, reencontrada, por honestos como ele. E gargalhada saúda a morte que não houve. Nosso prêmio é a conseqüência disso: comoBlau sobreviveu, pode contar. E podemos ouvi-lo. “Trezentas onças” éo “causo” crucial, no todo da obra centenária. Não fosse a sobrevivência de Blau, naquela noite fatídica, os agradinhos do cusco, o luzir das Três Marias...o relato não teria existido. O“causo”,esse,o abre e funda. Blau conta porque sobreviveu; e um mundoconfigura-se, aleluia. Blau tem um “duplo”, um gêmeo, um par; porque quem criou ambos conhece a dualidade; é da espécie dos que sabem: o preto, ausência das cores, é verso do branco, a soma de todas;ao desejo de morte corresponde o de vida; em noites de breu, em que somem guaiacas,as estrelas não somem de fato do céu; e algum afetozinho, ainda que canino, espreita na noite. Simões é dessa espécie, a quemLukàcsrefere-se: a dos que vão sós, mas sempre a dois, porque não ignoram a “dualidade da vida”. Dos que não temem as contradições, pois as sabem inerentes ao que é humano. E, então, ele cria um blau, mas lhe dá um “duplo”, semelhante e diferente. Erige um símbolo, mas o põe em dúvida. Endossa um mito, mas o desmistifica. Configura um tipo, porém o estiliza. E opõe o Riso à seriedade. Simões cria Romualdo; até certo ponto, um gaúcho de lei, mas, de certa forma e pelo Riso, às avessas. Em Blau, o dilema é possível; não em Romualdo, que o resolve previamente. O dilema de Romualdo nem chega a ser um; mas, no que tem de dilema, é menos “metafísico”: ser ou não agricultor. Blau -um “herói problemático” na narrativa citada - é hamletiano, à sua maneira. Romualdo, não (e, pelo cômico, não poderia sê-lo).A aventura de “A Quinta...”, porém, é igualmente crucial, pois um dilema se resolve aí previamente. Nesse “causo”, também ele fundador, Romualdo o descreve, tal dilema; porém, na prática:demonstração teoremática, fáctica,irrefutável, deixa claro desde o início que ao gáucho, o de lei, a prática agrícola, desde sempre, é vedada; por princípio; sobpena de destruição do “eu”; e sob pena de se topar como desacordodo mundo (solidário, de hábito). Romualdo se safa libertando-se da quinta, reencontrando o seu “eu” verdadeiro, a sua verdadeira identidade (o mate, a estrada, o churrasco, o fumo crioulo). Recupera, assim, a harmonia com o mundo. Tudo entra na ordem pela escolha de Romualdo. A de Blau é moral; e se faz no fazer-se; não é prévia: é comparável à que faz um outro Blau (o mesmo?) em “A salamanca do Jarau”: a renúncia à riqueza o devolve a si mesmo - e à harmonia com seu meio - por via de um processo; longo, na lenda; breve no “causo”. A de Romualdo, não; a dele, prévia eprática,éforçosa. Porém, “causo” de Blau, “Trezentas onças”, e “causo” de Romualdo, “A Quinta...”, quanto aprioridade, têm a mesma,no conjunto dos relatos respectivos. E não por acaso:Romualdo desencadeia a “enfiada” de seus “causos” ao exclamar “Compre chácara quem quiser; eu, por mim, estou farto”. Blau desencadeia a dos seus ao confessar-nos: “- Ah! patrício! Deus existe”... E ao concluir, mais adiante, lindamente: “era luz de Deus por todos os lados!...”
Dois momentos cruciais. Profano, o de Romualdo. O de Blau, sagrado. Que Blau,já agoracentenário, abençoe-nos; derrame a “luz de Deus” por todo lado onde nos transviemos nós, os seus patrícios, à cata, cada um, de bois barrosos, sem três-marias que nos alumiem. Tinha patrono Romualdo: “S. Romualdo”, que até os símios, em ladainha, honravam.E o povo entronizou Sepé: é santo! Falta Blau. O centenário é hora. Decrete-se, portanto: doravante, contamos com São Blau, nos céus sem fundo; o de “Trezentas onças” e(o mesmo) do Jarau; São Blau patrono (dos que à riqueza renunciem, pelo bem da moral). São Blau, ora pro nobis! * Profa. Doutora em Literatura - aposentada da UFRGS
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[1]A expressão é de G. Lukàcs (v. [1] LUKÀCS, G. L’âme et les formes, ed. cit., Paris, Gallimard, 1974, p. 156 (“Bibliothèque de Philosophie”) (Orig. alemão: Die Seele und die Formen). Trad. nossa. Essa obra se inserta na fase pré-marxista de Lukàcs.
[1]Concepção de LUKÀCS, G., Teoria do romance, Teoria do romance, trad. de A. Margarido, Lisboa, Edit. Presença, s/d (“Biblioteca de Ciências Humanas”). (Orig. alemão: Die TheoriedesRomans, Hermann LuchterhandVerlag).
[1]LOPES Neto, J. Simões, Casos do Romualdo - contos gauchescos, pref. A. Meyer, R. de Janeiro/P. Alegre/S. Paulo, Edit. Globo, 1ª ed., 2ª impr., 1958 ("Província"), p. 23.
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