Francisco Carlos Reverbel
Dr. Francisco Carlos Reverbel
O Dr. Reverbel – o Carlos que ficou * Cyro Martins Eu teria oito ou nove anos quando fui, certa vez, levado pelo meu par, a uma festa no Saladeiro São Carlos, uma das duas charqueadas existentes então em Quarai, minha terra natal. O que mais e melhor me impressionou naquele rebuliço foi a figura de um homem, muito bem vestido, de terno escuro e gravata vermelha, em cima não sei de quê e discursando. Meu pai, se baixando, me cochichou: “Esse é o Reverbel!”. Meu pai me explicaria depois da festa quem era aquele cidadão. Era o já então famoso Dr. Reverbel. Naquele tempo as famas municipais valiam muito. Médico, dono duma clínica enorme, relacionado com meio-mundo e de grande prestígio, principalmente entre as mulheres, formara-se em medicina no Rio de Janeiro, no princípio do século, e viera logo para Quarai, seu torrão natal, que tinha o grande atrativo de ser fronteira, de comunicação fácil com Montevidéu e Buenos Aires. Reverbel veio casado com uma formosa carioca. Casamento meio apressado, noiva grávida, porém tudo levado galhardamente. Mas seus vícios não ficavam só nos rabos de saia. Gostava de orelhar a sota no Clube Comercial até a madrugada. Apreciava pescarias, carreiras, rinhas de galo e gozava e desfrutava da fama de homem valente. Maragato, jamais baixara a crista para nenhum chimango, por mais atrevido que fosse. E talvez por isso mesmo tinha até amigos entre eles. Uma das suas conquistas mais rumorosas, e respeitáveis, porque durou quase toda a vida, foi a da filha do chefe republicano, o soba local do borgismo. Em 1924, quando ainda reinava uma atmosfera revolucionária no Estado, foi encurralado uma noite no café do centro da cidade, pelos irmãos da jovem dona, uma beldade, e seus asseclas. Saiu-se com brio, respeitaram-no, não se atreveram a puxar arma contra ele. Precavidamente foi dar com os costados em São Paulo, de onde retornaria meses depois com o mesmo entono, ainda em tempo de saudar das sacadas da cidade os heróis libertadores que voltavam gloriosos das coxilhas. Homem culto. Sabia aproveitar seu tempo. Quando não estava trabalhando, jogando, pescando ou conquistando, estava lendo. Lia sobretudo os franceses. No original, claro. No meu tempo de acadêmico de medicina em férias, lá por mil novecentos e vinte e tantos, ia às vezes a bailes no clube. Pude apreciá-lo no esplendor da sua imponência social, dirigindo polonaises: en avant, en derrière, à droite, à gauche, e lá iam os pares para a frente, para a esquerda, para trás, para a direita, desfrutando a alegria do momento. E ele, le brave Dr. Reverbel, dirigindo, impondo sua presença envolvente à comparsaria divertida. Era mesmo próprio para um jovem xucro ficar pelos cantos se babando de inveja. Abastecia-se de livros em Montevidéu, quando levava algum cliente platudo para consultar com as sumidades uruguaias. Naturalmente nessas ocasiões passava as noites em Carrasco, no cassino. E muito mais eu poderia contar desse personagem. Quando vim embora de Quaraí, em princípios de 1937, e fui me despedir do velho colega, mestre e amigo, encontrei-o acamado, com gripe. Estava melancólico nesse dia. Disse-me simplesmente isto: “Fazes bem em ir embora. Eu não fui...”. E deixou no ar uma reticência, dessas muito mais compridas do que os três pontinhos. E logo acrescentou, a título de consolo: “Estou relendo Os Miseráveis”. Hoje em Quaraí resta uma rua com o nome dele. Em Artigas, também. -------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- *Texto do Dr. Cyro Martins, no Segundo Caderno de Zero Hora, de 9 de janeiro de 1993, retirado de um escrito maior “Ares de relembranças” em que traça o perfil do Dr. Francisco Carlos Reverbel – o Carlos que ficou – e o do escritor Carlos Reverbel – O Carlos que foi embora. Publicado com autorização do filho de Cyro Martins, o Dr. Cláudio Meneghello Martins. |
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