Exílio e Memória nos contos de Cyro Martins – Gisele Bandeira |
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Minha dissertação surgiu após várias conversas com minha orientadora, que sempre insistiu que eu deveria, em primeiro lugar, me apaixonar pelo tema a ser desenvolvido para poder, então, me debruçar sobre ele, transformando essa paixão em pesquisa científica. Tendo em vista meu interesse pela literatura do Rio Grande do Sul (já evidenciado minhas pesquisas na graduação, sobre o sistema literário rio-grandino e sobre a poeta Maria Carpi) surgiu a ideia de explorar a obra de Cyro Martins, autor que eu já apreciava, especialmente por meio da sua Trilogia do Gaucho A Pé. Com a facilidade de dispor do DELFOS - Espaço de Documentação e Memória Cultural AQUI DA PUCRS descobri os dois livros de contos de Cyro Martins: Rodeio e A dama do saladeiro Esses livros me pareceram peculiares tendo em vista a produção do autor, e procurei dar mais atenção a eles. Logo percebi que se tratava de contos memorialistas, apesar de não serem assim designados na capa, ou nos elementos pré-textuais. Mergulhei no universo de Cyro: as ruas de Porto Alegre, os campos de Quaraí; tudo me soava conhecido e poético. Além disso, talvez sentisse um pouco de identificação pelo fato de meus pais, num outro momento, também terem deixado o meio rural para buscarem melhores condições de vida. No entanto, meus pais nunca fixaram identidade em Rio Grande, mas, de certa forma, também perderam ou pelo menos modificaram a sua identificação com Piratini, a cidade natal. Dessa forma, escolhi minha hipótese de trabalho: no caso de Cyro Martins, as suas memórias teriam sido escritas a partir de um sentimento de exílio? Depois da partida de Quaraí, rememorada no final de A dama do saladeiro, Cyro Martins ficou quatro décadas sem ir à sua terra, e, assim que retorna, publica Rodeio, em 1976 e A dama do saladeiro, em 1980. Sendo assim, construí o primeiro capítulo, SER ESTRANHO, ESTRANGEIRO OU EXILADO: A TRANSITORIEDADE DE CYRO MARTINS, buscando aportes teóricos que fundamentassem minha hipótese de pesquisa. Os estudos de Edward Said e Julia Kristeva, principalmente, embasaram minha escrita, e permitiram que eu analisasse a transitoriedade de Cyro Martins e revelasse, através da sua trajetória, elementos sentimentais de um exílio voluntário e necessário para uma mudança de vida do autor.
Sabem lá o que é retornar, depois de uma ausência de 41 anos, ao lugar onde tivemos as vivências de infância e adolescência, as mais veementes, assim, quase de surpresa, como saímos?
Estávamos ali, estava ali, sim, eu, em especial, estava ali. Os outros eram acompanhantes, solidários com minha comoção, porém, mesmo meu filho, não tinha condições para participar comigo da intensidade emotiva daquele momento, que iria durar dez minutos. Ora, o que são dez minutos na vida de um homem!
Ao término do primeiro capítulo, destaco que o exercício memorialista é uma prática recorrente dos que se afastam de uma terra natal. Dessa maneira, no segundo capítulo cedo espaço à investigação dos caminhos da memória, inclusive o que diz respeito ao tempo e à infância, os assuntos abordados por Cyro Martins na construção das suas memórias. Ressalto que suas memórias são pontuais e tratam de suas chegadas e partidas, tanto na adolescência, quando estudava Medicina em Porto Alegre, quanto na maturidade, ao reencontrar os pagos da infância. Assim, Cyro não pretendeu fazer uma autobiografia propriamente dita, conforme os moldes de Phillipe Lejeune, pois não desejava apresentar-se por completo ao público, o que reforçou a minha ideia de uma motivação sentimental para a escrita daqueles contos em específico. No segundo capítulo, O RODEIO DE LEMBRANÇAS – A MEMÓRIA NA LITERATURA ÍNTIMA, utilizo as teorias de Phillipe Lejeune, Gaston Bachelard, Paul Ricouer e Eclea Bosi, principalmente, e concluo que os ‘desvãos da memória’, nas palavras de Cyro, estão permeados de devaneios e de construções imagéticas alteradas pela passagem do tempo. Vê-se isso no trecho que segue de autoria de Cyro Martins:
Em vão tento inevitavelmente pôr em realce e fixar algumas imagens. Inútil meu esforço. Não são mais do que tons esfumados, traços finos, fugidios, compondo variedades rítmicas, que me sensibilizam e me enriquecem a imaginação, no sentido de que talvez possa um dia trabalhar com elas sem compromissos de realidade. E entrando nesse retouçar do fantástico, talvez lhe restitua um naco da natureza humanizada que, em vida, chamamos existência.
No último capítulo, MEMÓRIAS EM QUESTÃO, passo à análise dos contos, a começar pelo livro A dama do saladeiro, que no início versa sobre o período de estudante de Cyro e que termina com a sua partida definitiva de Quaraí. Logo após passo à análise de Rodeio, que marca o reencontro com o Cerro do Marco, localidade rural em que fora criado. Busco, no estudo dos contos, mostrar uma faceta subjetiva de Cyro Martins, que se mostrou um estranho a Quaraí e também a Porto Alegre. A campanha, a velha casa no Cerro do Marco, as pensões baratas da capital: todos os temas dos seus contos foram evocados a partir de uma saudade inabalável. E essa falta que sentia do seu passado envolve toda a sua criação literária, desde Campo fora até as denúncias da Trilogia, uma vez que Quaraí faz-se ambiente recorrente nos seus livros. Entretanto, só depois de 41 anos de ausência da sua terra natal que Cyro resolve dar espaço a suas vivências. Dessa maneira, o exílio a que se propôs desde a decisão de partir de Quaraí, para constituir uma nova vida profissional e para fugir dos traumas causados pela perda do pai, impulsionou uma literatura voltada para os assuntos da fronteira. Contudo, somente o reencontro com o Cerro do Marco fez com que Cyro falasse abertamente de suas lembranças íntimas. Em última análise, mais do que um estrangeiro para todos os lugares em que transitou, Cyro Martins tentou ser um estranho ao seu passado, escondendo suas experiências atrás do discurso de protesto da Trilogia, por exemplo. Todavia, ao conciliar o encontro físico e espiritual com a antiga morada, viveu o ápice de sua prática memorialista e de sua vida, já que pode unir seu passado e presente na figura da casa materna. Para concluir, nas palavras de Cyro Martins:
Os retalhos de vida parecidos a esses formam um arquipélago sobrenadando na memória, propiciados pelo sopro dos liames associativos inerentes ao instante altamente emotivo. Não obstante, embora extremamente sedutora a aventura às avessas de recordar, farei um corte na minha charla para não perder a perspectiva do momento. De resto, as reticências sempre acalentaram a imaginação.
Também eu acabo aqui a minha charla para não perder a perspectiva deste momento, e digo que as reticências no texto de Cyro Martins sempre serão recorrentes, uma vez que sua fala sempre se (re)atualiza, permitindo novas leituras e abordagens – em especial a aqui desenvolvida, que se vale de um aporte teórico da contemporaneidade, que traz conceitos tais como exílio e memória, deixando clara a possibilidade de leitura dos contos de Cyro por esse prisma.
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