Da tempestade de Shakespeare ao Ariel de Rodó | | Imprimir | |
< Sumário - Volume 2 - Segundo Semestre - 2011 Encontros e Desencontros da/na
Organização Ligia Chiappini Da tempestade de Shakespeare ao Ariel de Rodó Carlos Túlio da Silva Medeiros [1] A última peça inscrita por Shakespeare no ano de 1611, A Tempestade também estréia naquele ano. Obra divida em cinco atos, em verso e prosa, configura-se, antes de tudo, é uma história de vingança, de amor, de reconciliação. O inglês busca na comedia dell’arte italiana a fonte para escrever uma de suas maiores obras. Algumas intrigas análogas surgem e se assemelham e tem sido relatadas por diversos leitores da obra shakespeareana. Dispostos tais elementos, combina detalhes do naufrágio Sir George Somers, região das Bermudas, da qual foi colonizador. Outros consideram como fonte provável do autor inglês a tragédia do romance castelhano La gran conquista de Ultramar (1291-1295). Entretanto, A tempestade é, antes de tudo, uma obra madura. Parte-se da alegoria entre o mago Próspero e o poeta, que alcança a maestria da linguagem. Desenvolve a trama em torno de três personagens centrais, quais sejam: Próspero, o Duque de Milão, Ariel, um Espírito etéreo, e Caliban[2], o escravo selvagem e deformado. (A Tempestade, 2009). Shakespeare, em A Tempestade, destaca o destino não muito afortunado de Próspero, o duque de Milão, que é banido de sua cidade por traição de seus assessores mais diretos, entre eles o seu irmão Antonio. Colocado num barco, é entregue à mercê da própria sorte juntamente com sua filha Miranda. Após alguns dias em alto mar, desembarcaram em uma ilha deserta, que já havia sido habitada pela feiticeira Sicorax. Nela, a feiticeira havia deixado aprisionados vários espíritos, que foram soltos, posteriormente, pela magia de Próspero. Na interpretação de Retamar (2004), por exemplo, Próspero não desembarca numa ilha deserta, mas a rouba de seu único habitante, Caliban, a quem ensina a sua língua, escravizando-o. Caliban, em um dado momento lhe diz: “Me ensenãron su lengua, y de ello obtuve/El saber maldecir. ¡La roja plaga/Caiga en ustedes, por esa enseñaza! (RETAMAR, op.cit p. 22). Entre os muitos espíritos aprisionados pela feiticeira Sicorax encontrava-se Ariel, espírito assexuado e, antes de tudo, obediente, com poderes que lhe permitiam transformar-se em elementos como o ar, a água ou fogo, que Próspero submete, logo imediatamente, às suas ordens. Assim, juntamente com Ariel, o duque e mago de Milão já tem a seu serviço o filho da feiticeira, Caliban, criatura adulta, definitivamente monstruosa, desprezível e ingênuo, único habitante, de fato, na ilha. O Duque Próspero e a jovem Miranda vivem naquela ilha isolada e distante de tudo por doze anos, quando, num dado momento, Próspero, fica sabendo que os seus inimigos políticos, em viagem pelo mar, estariam passando próximo à ilha. Estavam presentes nessa viagem seu usurpador e irmão Antonio, o Rei de Nápoles Alonso e seu Fernando, o velho conselheiro Gonzalo, além da própria tripulação. Próspero, então, chama e ordena a Ariel que provoque, então, um naufrágio e traga todos para a sua ilha, entretanto, distantes um dos outros, com o objetivo de levá-los ao desequilíbrio mental. A partir daí se inicia o drama, pois como não conseguem encontrar o filho do Rei, Fernando, passam a acreditar que o jovem não resistiu à tempestade e ao naufrágio. Fernando, como também não encontra a tripulação, pensa ser o único sobrevivente. Diante desse quadro, Próspero aproveita para fazer “experiências” entre todos os seus ex-súditos, especialmente no que diz respeito ao caráter de cada um. Ariel, neste processo é sempre um espírito obediente e não contradiz ao mago. Caliban o desafia constantemente, pois, embora seja um escravo de Próspero, não aceita tal condição, julgando-o, inclusive, como não apto para ser o seu Senhor. O uso de elementos da natureza por parte do mago Próspero com o objetivo de atemorizar a tripulação de seu irmão, o coloca como Senhor da diégese, se consideramos que ele passa a ser aquele que determina desde o local onde as cenas ocorrerão às futuras ações que dizem respeito a cada naufrago, inclusive do próprio de Ariel. É Próspero que determina a evolução de cada ser naquela ilha perdida. Características como a loucura e o desespero, que tomam conta de toda a tripulação são efeitos da “vontade” do mago, alem da própria fraqueza humana de cada ser humano. Dessa maneira, não so a palavra de Próspero, mas a sua vontade, antes de tudo, determinam essa ação na obra, a faz andar enquanto narratologia. Fernando e Miranda se encontram e se apaixonam. A primeira missão de Próspero estava realizada. Depois de alguns sustos, Próspero reúne a todos, cada um com a sua devida lição sobre os atos cometidos na vida; realiza, assim, a sua segunda missão, neste caso, lição. Antonio, seu irmão, enlouquece; Alonso arrepende-se de sua crueldade e pede perdão pelos males cometido. Feitas as devidas pazes, Próspero se reconcilia com todos. Entretanto, durante o período em que viveu na ilha, prometeu a Ariel que um dia o soltaria para que vivesse, enfim, a sua real liberdade, tantas vezes solicitadas por ele ao Mago. A seguir, após preparar a sua partida, chama o espírito do bem, renuncia à sua vareta mágica libertando-o. Quando retorna ao seu reino, Próspero parece ciente e determinado que no instante em que liberta Ariel, o espírito celeste, ele estará realizado seu próprio processo de catarse, uma vez que estará livrando-se de seu lado mau, de seu lado, Caliban, que fica sozinho, dono da ilha. Quando os personagens shakespeareanos deixam a ilha dos espíritos, essa viagem é longa porque atravessa o oceano e é cooptado, 289 anos depois, por um escritor complexo, polêmico e, certamente, profético, chamado José Enrique Rodó. O escritor uruguaio, no ano de 1900, quando publica a primeira edição de seu ensaio intitulado Ariel, transporta para a América Latina as personagens mais relevantes da obra inglesa: Próspero, Ariel e Caliban, que se convertem em heróis de uma outra realidade, outra história. Quando Rodó apresenta Ariel, traz com ela toda uma análise recheada de comentários, apologias, metáforas, eufemismos e ironias, além das perspectivas e correntes filosóficas que impregnavam aquele momento histórico mundial. Ariel vem expor um ‘pensamento polifacético”, como nos recorda Lapoujade[3] (2006), e expressamente comprometido com seu autor nos aspectos: filosófico, ético-estético, social, religioso, educativo, psicológico, antropológico, mas antes de tudo, no aspecto político, uma vez que Rodó determina o utilitarismo como foco de combate e crítica. Na obra rodoniana, as figuras assumem significados simbólicos. Vejamos: Próspero – é o nome que evoca aquele favorecido pela fortuna; progresso, mas, talvez, o seu conhecimento seja o seu maior valor, já que para Rodó, é apresentado como de um docente experiente; Ariel – é a metamorfose da palavra “ar”. Designa um espírito. Representa a intelectualidade, a “liberdade”, ou pelo menos, o elemento que pode orientar o povo latino-americano no caminho dessa liberdade nunca conquistada. Caliban – um jogo de palavras que significa, como já nos disse Retamar, um anagrama de “canibal”, que assume o “Mal” norte-americano. Por Shakespeare, a personagem evoca o canibal exatamente como Montaigne descreve em seu ensaio Les Cannibals (séc XVI), cuja ressonância se nota em A Tempestade, de W. S. O cruzamento entre as obras Ariel, de Rodó, e A Tempestade, de W. S. acontece desde o primeiro momento, quando o Próspero rodoniano é comparado por seus alunos ao sábio e mago de Shakespeare logo na abertura da obra quando este conversa com seus alunos no último dia de aula, junto à estatua de Ariel, que está posicionada no centro de um pátio. Diz Próspero: “Ariel é o império da razão e o sentimento sobre os baixos estímulos da irracionalidade; é o entusiasmo generoso; a espiritualidade da cultura, ao contrário de Caliban, símbolo da torpeza”. A dúvida de Rodó era se seria possível sonhar com uma geração que apontasse para um mundo melhor, tanto que na introdução de seu ensaio tem a dedicatória: À juventude da América. Rodó defendia que muito mais importante que resguardar a idéia de relativa bondade que se vivia no presente, a humanidade deveria estar preocupada com a possibilidade de poder chegar a um fim melhor através do desenvolvimento da própria vida. Nesse aspecto, indicava o caminho da educação como o único processo capaz de se alcançar uma vida saudável, entretanto, condenava a obtenção desse progresso, especialmente aquele obtido através da riqueza, que subjugava o outro, aquele distante da vida em paz com o próprio espírito. O utilitarismo pregado pelos Estados Unidos, por exemplo, desvirtuava a sociedade para o consumismo acelerado e sem função, antropofágico, calibalesco, se queremos fazer uma associação a Caliban. Dessa forma, na visão rodoniana, o que domina a sociedade atual se chama “individualismo medíocre”, sem a presença da alteridade, uma vez que a satisfação é restrita, pessoal, única. Em Ariel de Rodó, a narrativa toda é por conta de Próspero. Ariel, o espírito do ar não tem voz, uma vez que o velho professor é o conduto da diégese. Procura demonstrar aos ouvintes, jovens alunos, que o que deve importar é antes de tudo a liberdade de espírito, sem se importar com a riqueza determinada e imposta pela corrente que já dominava a América Latina, ou seja, a águia americana, que já impunha o seu “american way” como o modelo a ser seguido. Em Ariel, nota-se o resgate, por parte de Rodó, do que pensava o argentino Juan Bautista Alberdí (1810-1884), que afirmava: En nuestros planes de instrucción debemos huir de los sofistas, que hacen demagogos, y del monarquismo, que hace esclavos y caracteres disimulados. ¡ue el clero se eduque a sí mismo, pero no se encargue de formar a nuestros abogados y estadistas, a nuestros negociantes, marineros y guerreros. ¿Podrá el clero dar a nuestra juventud los instintos mercantiles e industriales que deben distinguir al hombre de Sudamérica? ¿Sacará de sus manos esa fiebre de actividad de actividad y de empresas que no haga ser el yankee hispanoamericano? (ZEA, 1980, p. X). Se pensarmos dessa forma, numa busca de libertação da ideologia que nos dominou aos poucos, especialmente depois da implantação de pensamentos como o destino manifesto ou a política do monroerismo, que tinha a idéia do expansionismo praticamente a todo custo, a pergunta deveria ser: devemos ser um Ariel ou um Caliban? Lagarta ou borboleta? “Autêntico’ ou, definitivamente, Genuíno, diferente? Em A Tempestade, de William Shakespeare, a figura de Ariel, nos é apresentada como um espírito sempre inteligente, tranqüilo, que resolve todos os problemas à ordem de seu mestre. Vive livre, no entanto, subjugado por seu “amado” Senhor Próspero. Quando pede a sua liberdade, e isso ocorre em duas ou três vezes durante a narrativa, é lembrado por seu mestre da dívida que este tem com ele, entretanto, que um dia o libertará; e, assim, Ariel, sem resmungar, pacientemente aguardava. Ao contrario de Caliban, que escravo, deixa claro que odeia seu amo. Certamente há muitos Arieis e Calibans e todas as épocas, culturas e sociedades. Há Arieis ricos e pobres, inteligentes, ou não. Há um tipo desse aonde exista a espécie humana. Entretanto, quem deveríamos ser? Ariel ou Caliban? No passado da América Latina, não se vê um momento de busca do espírito, não se vê um momento de busca do ócio, da retomada pela cultura grega e valorização do belo, pelo menos como filosofia ou plano econômico, enquanto momento de reflexão sobre aquilo que somos ou pertencemos, pelo contrário. Perguntamos: O Ariel rodoniano, então, foi derrotado em sua proposta? Temos sido apenas transgressor? Temos sido Caliban? Rodó podia estar certo quando falava que a sociedade latino-americana devia se preocupar mais a respeito de seu consumismo, fator mutilante no ser humano. Quando a globalização toma conta do planeta e domina todos os mercados, está produzindo Calibans. Entretanto, devemos ser uma figura inteligente, mágica e submissa, como Ariel, ou feia, horrenda e “livre”, como Caliban? Creio que se pode ser um pouco de cada: Ariel e Caliban, e com eles, ou, a partir deles, recriar um nível simbólico de forças, resultando numa transculturação, um terceiro ser que resulte em matéria-carne, espírito-ar, bom-ruim, elementos da dualidade humana, e talvez, resultar num mix de tais misturas, como sustentava Roger Bancon: ‘... que o corpo se faça espírito e o espírito se faça corpo”. Bibliografia LAPOUJADE, Maria Noel. Ariel e Calibã como protótipos da espécie humana. In: Cronos, Natal-RN, v. 8, n.1., p. 203-214, jan/jun, 2007. RETAMAR, Roberto Fernández. Todo Caliban. Buenos Aires : CLACSO, 2004. RODO, José Enrique. Ariel. Campinas, SP : Editora da UNICAMP, 1991.
[1] Universidade de São Paulo-USP (doutorando) [2] Caliban é um anagrama forjado por Shakespeare a partir de canibal,cujo sentido é o de antropófago e já o havia empregado em outras obras como A terceira parte do Rey Enrique VI e Otelo. Caliban, de outra forma, provem de caribe (RETAMAR, 2004, p 22). [3] Lapoujade, Maria Noel. Ariel y Caliban. México. |