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Um menino vai para o colégio - Cyro Martins  E-mail
Estante do Autor - Ficção

 

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altEsperar cinco minutos, dez mesmo, espera-se! Mas vinte, vinte e cinco, trinta, era quase um desaforo - refletia seu Afonso, de cara amarrada, fitando os ponteiros do relógio de prata.

Anunciara-se às quatro e meia. O porteiro - um padrezinho baixo, velho, imberbe, de face apergaminhada - prometeu que seriam atendidos imediatamente. Entretanto, não aparecia ninguém.

Das paredes pintadas de verde (um verde grosso, antiquado) pendiam quadros, emplastados de enfeites, das primeiras turmas de bacharelandos do Ginásio. Aqueles todos decerto já eram advogados, médicos, talvez deputados... O fazendeiro não se podia furtar à idéia agradável de que um dia o retrato do filho estaria também num quadro assim, exposto à admiração de outros que viriam recém-chegando...

Apesar dessas escapadas da imaginação, a espera naquela sala penumbrenta, silenciosa, fatigava. Aos poucos ia se gastando a boa disposição que os animava ao penetrarem no edifício. O guri entrevia na taciturnidade do casarão, uns indícios sombrios da prisão que o aguardava. O pai já fumara dois crioulos e amaciava o fumo para o terceiro, quando o trinco foi acalcado pelo lado de fora. Embaraçou-se. Fecharia o cigarro ou deitaria fora aquele rico amarelinho? Felizmente, ao sacalão inicial, seguiu-se um cauteloso abrir de porta, tão manso, que até chegou a parecer que era apenas o vento, uma aragenzinha qualquer, que deslocava a custo a folha larga e pesada.

A seu Afonso sobrou tempo para despejar o fumo no cinzeiro, limpar a mão no lenço e cheirá-la.

A ponta do sapatão, que se assemelhava ao focinho de certos bichos, assomou. E logo atrás, a orla da batina arredondou-se num avanço mole.

A expectativa adensava-se dentro da salinha, e foi uma desopressão súbita para ambos, singularmente para o guri, quando um rosto ovalado e risonho, onde a pacatez do olhar azul contrastava com a espessura dos lábios, surgiu plenamente, encimando um corpo alto e sólido. Levantaram-se.

Estivessem a gosto. Aquela casa era simples, não conhecia cerimônia, afora as devidas a Deus.

Com polidez, o padre diretor entrou a informar-se dos costumes da família, da criação do menino, do seu caráter, da instrução escolar e da instrução religiosa.

- Religião? Na campanha, Sr. vigário, não se trata disso. Campereia-se normais...

O diretor sorriu, esclarecendo com mansidão e familiaridade:

- Mas eu não sou vigário, Sr. Afonso, pertenço a uma ordem.

- Ah! então me desculpe, Sr. vig.... como?

- Diga padre, simplesmente.

- Pensei que o senhor pudesse se ofender. E se me permite, vou justificar o meu erro.

- A vontade, terei prazer em ouvi-lo.

- Na nossa campanha, quando o vigário aparece uma vez por ano fazendo batizados, é costume prevenir-se as crianças: não vão chamar o vigário de padre que ele fica brabo.

O diretor riu gostosamente, simpatizando com a anedota e com a franqueza do gaúcho.

- Pois fique certo que não me ofendem, felicito-me, pois é uma graça do Supremo poder ser chamado assim.

Carlos seguia com interesse a palestra. Nos últimos dias, em casa, quando todas as atividades convergiam para o seu apronte, muito se falara no rigor reinante nos colégios de padres. Por isso lhe surpreendia agora o jeito bondoso daquele.

- Após uma breve pausa, o padre se voltou para o menino, dizendo, em tom natural, como se continuasse um assunto já encadeado:

- Mas ainda está em idade de ir para o bom caminho. . .

Seu Afonso sentiu-se um tanto chocado com esta saída imprevista, chegando mesmo a abrir a boca para um protesto, mas o senso prático e o medo de dar ratas, que era a sua preocupação maior na capital, o mantiveram calado. Não obstante a contensão oportuna, algo lhe transpareceu no semblante, porque o diretor encompridou a frase, sublinhando-a com um gesto compreensivo, de maneira a varrer dúvidas, de que aquilo não afetava em nada a boa acolhida que seria dispensada ao menino.

- Além disso, a criação exemplar que teve, que se percebe logo pelos modos, pela simples presença. Nem parece criado no campo.

Agora sim, o fazendeiro ia retrucar. Como um corisco, cruzou-lhe aquilo várias vezes pela cabeça: "nem parece criado no campo". Merecia troco, e troco grosso. O padre, no entanto, reconheceu em tempo que cometera outra gafe, a seu próprio juízo imperdoável para um diretor de ginásio.

- O que quero dizer, Sr. Afonso, é que nem todos os rapazes educados na campanha têm maneiras tão civilizadas como o seu. Aliás, para o pensionato, nós preferimos estes, do campo, puros ainda dos terríveis vícios que os rapazes da cidade adquirem desde cedo, hoje em dia.

O homem sentiu-se sinceramente aliviado com a explicação, pois lhe causaria desgosto qualquer desentendimento inicial com os padres. Trocaram ainda algumas palavras corteses, de franca compreensão, e ele se retirou, deixando o filho "entregue à judiciosa direção do Ginásio".

- Não senhor, entregue em primeiro lugar a Deus e sob a proteção direta do seu anjo da guarda!

Quando Carlos penetrou no interior do colégio, encheu-se do sestro que lhe vinha das paredes altas, da tranqüilidade dos pátios desertos, do homem estranho que caminhava ao seu lado, da música monótona e nostálgica que filtrava através das janelas com vidraças de cor.

- Lá - falou o padre, apontando com o indicador para cima - é a capela do Ginásio.

Mais uns passos, e a paisagem se alargou subitamente numa amplitude limpa e extática. O Guaíba, remansado, sem um friso na superfície tingida de cores, espelhando o céu, atraía a vista e exaltava.

- Você, Carlos, sabe rezar ?

O guri ficou quieto.

- A sua mãe não lhe ensinou?

- Não...

Foi um "não" balbuciado, furtivo.

- Aprenderás, meu filho, aprenderás a amar Jesus.

O que o padre teria visto luzir nos olhos do menino, que o surpreendeu?

- Mas não conheces Jesus, o filho de Deus ?

O guri não respondeu, porém a memória saltou longe atrás, evocando os gemidos da mulher doente que pousara em sua casa e que passou a noite inteira exclamando: "ai-Jesus! ai-Jesus!" Agora, já na entrada do colégio, tivera a revelação. Aquele Jesus era o filho de Deus! Mas isto só não bastava. Abria-lhe apenas perspectivas novas.

- Deus tem filhos, padre?

- Filhos? Não. Apenas um, Jesus, que é ele mesmo.

Dois olhos arregalados de incompreensão e ávidos de esclarecimentos fitaram o Diretor.

- Mas, dessas coisas sagradas e eternas, irás sabendo aos poucos. A alminha ainda não está preparada para receber a palavra dos evangelhos.

Como o guri continuasse atento, com uma expressão fisionômica de interesse, ele, esfregando as mãos, deixou escapar mais um frase.

- Aprenderás a temer a Deus, meu filho, aprenderás ...

- E a gente precisa ter medo de Deus?

A candura do menino teria comovido o coração do padre, se este não houvesse sofrido o assalto de uma idéia súbita e terrível: às vezes os demônios se aproveitam da boca das crianças para ultrajar a dignidade dos representantes do Altíssimo!

- E quem não for temente a Deus - acentuou o diretor, estirando o indicador ossudo - penará, nas chamas do inferno, junto ao tinhoso!

Era mais uma réplica ao próprio diabo do que ao guri que se encolheu, esmagado, com medo da batina, com medo do braço que se estendia à sua frente e aterrorizado da cólera divina.

Mas já o padre se abrandava, refletindo sobre a falta de culpa daquela alminha ingênua, transparente demais para a maldade.

- Vais entrar agora para a sala de estudo, onde encontrarás os teus colegas de internato. Daqui a pouco já farás amiguinhos.

Chegaram a uma porta. O subprefeito acudiu pressuroso.

- O novo interno. Chama-se Carlos de Abreu. Dê-lhe qualquer coisa para se distrair.

Quando a folha da porta se fechou, o diretor meteu a mão no bolso fundo, tirou o breviário e saiu a passo lento pela galeria comprida e solitária. E enquanto os lábios balbuciavam as orações do dia, o pensamento repassava o diálogo recente: "Não sabe nem quem é Jesus! Um menino com quase doze anos ... Um pequeno selvagem! Que bela presa para o demônio. Como criam os filhos..." E logo uma especulação mais alta lhe ocorreu: "Terão salvação esses pais? Por certo, isso é por ignorância. Mas não deixa de ser um pecado imenso... E se um filho, por desleixo de educação religiosa, for para o inferno, terão esses pais negligentes o perdão de Deus, dentro da sua infinita justiça?"

Virou a página do breviário. Prosseguiu lendo. No extremo da galeria, estacionou ante o espetáculo do ocaso, inesperado. Lutou contra a força imperiosa do sangue italiano que lhe corria no corpo, porque a tentação de se perder nas cores do crepúsculo o arrastava para a profundeza da sua meninice. Até pouco antes de entrar para o seminário, todos acreditavam que a sua vocação era a pintura, inclusive ele mesmo. Foi uma corrida desesperada do atelier até em casa, quando terminou a primeira aquarela. Queria que todos a admirassem. O mestre o elogiara, prevendo nele um artista do pincel. Seu pai contemplou atentamente aquela orgia de luz, enquanto ele, sôfrego, esperava o aplauso. Por fim, proferiu as palavras que o afastariam para sempre da tela: "Muita sensualidade!"

Ainda se a mãe não as tivesse ouvido ...

Durante minutos, num conflito abrigado atrás dos lábios que rezavam, oscilou entre o dever religioso e o fascínio da contemplação.

Afinal, num ato de fé, voltou as costas às imagens quase irreais, de conto de fada, das nuvens do céu e do rio. O pensamento retornou ao novo interno: "É estranho o menino. Revela argúcia. Não é comum ver-se numa criança curiosidades desse gênero". Mas logo se corrigiu: "Não, é comum, eu é que estou exagerando uma trivialidade". Parou. Consultou o relógio. Faltavam dois minutos para o início da bênção. As refrações do poente e da água parada projetavam-se maravilhosas nas paredes brancas. Enxergava tons de arco-íris para todos os lados. Os vidros de todas as casas resplandeciam. E dentro do seu peito agitado, estuavam solicitações insatisfeitas de coloridos, de sinfonias, de sorvos de vida.

Uma angustiosa sensação de presença do tentador o fez cerrar o sobrecenho e apressar o passo. Mas um vento fresco e súbito sacudiu as águas do Guaíba. E os reflexos crepusculares, balançando de leve nas paredes nuas, exerciam a fascinação dos cultos proibidos.

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Cyro Martins,
Um menino vai para o colégio.(novela)
Porto Alegre, Movimento, 1998. p. 36-40. (7ª ed.)

 

Links Relacionados:
- Fortuna Crítica - Carta de Augusto Meyer sobre Um menino vai para o colégio
- Assista ao filme baseado no livro Um menino vai para o Colégio

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