Sinfonia às Avessas * |
Escritores Gaúchos |
Waldomiro Manfroi Já havia esgotado meus argumentos contra o alto tom nas conversas das pessoas. Em reuniões, em aniversários ou em restaurantes, aquela zoada de vozes sempre aos berros. Quando os sons agudos se tornavam mais estridentes, meus tímpanos se irritavam e reagiam com enjôos, zumbidos e tonturas. Não adiantava pedir ao garçom que as pessoas falassem mais baixo. Ninguém entendia a razão da reclamação. O incômodo era tanto que, em pouco tempo, passei a comparecer a eventos festivos ou científicos só no limite do indispensável. As saídas para jantar com minha companheira, namorar, atualizar conversa, ficaram seletivas: às terças-feiras, sempre no mesmo lugar, no Bar Recanto. Era a antiga e saudosa casa do Joá. Chão de tijolos maciços, entre árvores, no fundo do terreno, à esquerda da Estrada da Serraria. No interior, pouca luz, conversa baixa, pratos à la carte, música de cordas. Perigoso podia ser, mas isso não contava. Valia a conversa suave, modulada pelos movimentos dos lábios. Meu bem, meu amor, vistos e ouvidos, como nos tempos das paixões. Tanto me habituei àquela fala suave, que abandonei, de vez, os irritantes sons dos encontros em locais públicos. Permiti-me uma única exceção: os concertos da Orquestra Sinfônica, uma vez por semana. Mesmo assim, passei a chegar em cima da hora, a não me afastar nos intervalos. Abandonar o recinto depois de todos.
Para os amigos e parentes, eu havia me tornado um anti-social. Um sujeito esquisito, apontavam, sem discrição. Ainda bem que os filhos eram mais compreensivos ou mais tolerantes. Como saber? Confortava-me ouvi-los explicar as razões da minha conduta. Não havia motivo de preocupação para o estranho comportamento do pai. Nada era estranho. O problema vinha de longe. A implicância do velho começara com o som dos roqueiros. Eles já tinham se acostumado com suas impertinências, de ouvi-lo exclamar que os novos hábitos musicais representavam um perigo para a audição, os espetáculos movidos a caixões sonoros eram uma fábrica de surdos, jamais uma expressão artística.
Com essas explicações dos filhos, ninguém mais me convidava para nada, e, assim, pude viver sossegado.
Numa certa manhã, mesmo havendo ameaça de chuva forte, saí de casa, a fim de comprar ingressos para o concerto da noite seguinte. Entrei na fila, como convinha. Do ponto onde me encontrava, continuavam a me perseguir os irritantes roncos e buzinas dos carros da rua. Dali, também podia enxergar a multidão que aguardava o começo de um evento na sala de espera do teatro. Mesmo à distância, podia notar que essas pessoas portavam crachás na lapela, pastas às mãos, mas não podia identificar sobre o que era a convenção. De repente, os ruídos dos carros começaram a ficar abafados, distantes, dominados por uma cortina de silêncio que brotava dos gestos das pessoas da sala de espera. Hipnotizado pelo prazer do vácuo, caminhei ao encontro daquela gente. Quanto mais próximo chegava, mais o silêncio crescia. Fui me aproximando..., aproximando... e, quando me encontrei no meio da multidão, percebi que eram os sorrisos e os gestos de mãos daquelas pessoas que semeavam o silêncio. Tomado de súbita alegria, dei-me conta de que podia voltar a me sentir, outra vez, um ente social. Podia conviver, feliz, em locais com muita gente. Desde que fosse na companhia de surdos-mudos.
* Sinfonia às Avessas. IN: Sinfonia às Avessas. Contos. Suliani Letra & Vida Editora. 2009.
Sobre WALDOMIRO MANFROI Médico Cardiologista renomado, Professor Emérito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde exerceu os mais altos cargos acadêmicos e administrativos, Waldomiro Manfroi é também prestigiado romancista, com diversos títulos publicados, dentre os quais “A confissão do espelho”, “Os demônios do lago” e “Férias interrompidas”. No entanto, sua última incursão na literatura foi com o surpreendente volume de contos “Sinfonia às avessas” (2009), livro que tomou por título o texto aqui comentado.
Na diversidade dos contos que compõem “Sinfonia às avessas” destaca-se este que, em sua singeleza, representa uma parcela da visão de mundo do escritor, um observador contumaz da realidade, o que não exclui a ironia profunda com que manipula circunstâncias, fatos e personagens, deles obtendo o maior efeito estético. Senhor de sua linguagem, dá-nos a ler, nesse conto, a expressão de um denso recolhimento, na visão crítica de um narrador–personagem que deseja viver em silêncio, liberto das agressões sonoras do dia a dia. O final surpreendente e irônico deixa o leitor “hipnotizado pela paixão do vácuo”, para usar uma expressão do contista, que justifica o epílogo aberto.
Léa Masina Profa. Associada da UFRGS, Doutora em Literatura e Crítica Literária |