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É PRECISO RELER CYRO MARTINS! | Imprimir |  E-mail

Ronaldo Machado - Professor de Literatura


Li muitos dos depoimentos dos que conviveram com Cyro Martins. Da mesma forma, li muito dos depoimentos de Cyro Martins a respeito daqueles com que conviveu. Entre esses relatos percebo uma simetria, uma reciprocidade de tratamento e respeito. Dou, então, um oh! de casa! e, sem esperar o apeie-se!, entro nessa charla. Por certo sem o tino campeiro, que não faltava a Cyro Martins, mas com o respeito que se deve ao escritor e sua obra. E Cyro Martins me apresenta seus amigos: Alcides Maya, Augusto Meyer, João Octávio Nogueira Leiria, Lila Ripoll... Nesta prosa, cada vez mais vou conhecendo o homem e o autor Cyro Martins.

Assim, mesmo que em circunstâncias diferentes, passo a conhecer e a trabalhar com a obra Cyro Martins com a mesma admiração que nele suscitou a obra de Alcides Maya. E, passados pouco mais de dois anos de "convívio" efetivo, afirmo que, parafraseando Augusto Meyer ao se referir a Alcides Maya, é preciso reler Cyro Martins!

É que a obra de Cyro Martins, apesar de sua extensão e qualidade, de proporções definitivas, tanto como criação literária, como testemunho humano, não teve ainda uma precisa e adequada análise do conjunto do seu universo ficcional. Acabou identificada apenas pela trilogia do gaúcho a pé - Sem Rumo, Porteira Fechada, Estrada Nova. Restrita a esse rótulo, outros aspectos não menos importantes acabaram esquecidos.

Na obra de Cyro Martins, ocupa lugar privilegiado todo um cuidado com o lembrar - a busca da memória, da vida, para vencer a morte - sendo, me parece, o que realmente alicerça o percurso e o conjunto de sua criação ficcional, desde os primeiros contos de Campo fora (1934) até a última novela Um Sorriso para o Destino (1991).

Nesse conjunto, o autor é, alternada ou simultaneamente, sujeito e objeto da história (narrador, testemunha, personagem), configurando na ficção o discurso da memória, onde os acontecimentos da vida passada são observados a partir do presente e reconstituídos pela linguagem modelada pela visão humanista do médico e psicanalista.

Essa recherche dos resíduos do tempo, guardados na memória (1), entretanto, vai se consubstanciar em algo maior do que a simples memorialística e para além da denúncia social. Inicialmente, com a trilogia do gaúcho a pé, Cyro Martins de fato se engajará na preocupação em descrever, analisar e entender uma realidade sócio-econômica problemática, que ultrapassa o plano individual. Mas depois, com a ficção e ensaios posteriores a sua formação psicanalítica, se preocupará em aprofundar aquele painel, principalmente em seus aspectos humanísticos, visando apresentar uma visão panorâmica do mundo em que vivemos, procurando situar a realidade histórica do regional dentro do âmbito vicissitudinário da história universal de hoje.(2)

Num primeiro momento, os cenários de miséria, fome e doença vistos pelo médico que - naquela rotina de todos os dias e inglório cravar de dentes na polpa da miséria (3) - é obrigado a agir, mas que está cônscio da ineficácia de qualquer procedimento circunstancial, depois de transmutada em cena ficcional ganha sentido de crítica e denúncia social, dimensionando o particular e o geral, o individual e o coletivo.

Nesta narrativa sobre a história e o espaço da campanha gaúcha, Cyro Martins tece a intriga do texto lançando mão não só de suas experiências de vida, mas também valendo-se do conjunto de representações construídas pelos primeiros regionalistas. Isto é, escreve não só a partir de um universo de referências históricas e culturais que têm origem na sua experiência da campanha, como criança, ou depois como médico, mas também na leitura da tradição regionalista gaúcha, com base em Alcides Maya e Simões Lopes Neto entre outros, bem como na poetada platina, como escreveu.

Depois, o universo ficcional de Cyro Martins se abre para além da campanha gaúcha, como, por exemplos, no volume de contos A entrevista, de 1968 ou no romance Gaúchos no obelisco, de 1984, onde a narrativa situa-se no espaço urbano e os problemas discutidos situam-se para além da temática sociológica. No conto Você deve desistir, Osvaldo, de A entrevista, o autor elabora uma análise minuciosa dos conflitos existenciais da sua personagem. Aqui a perspectiva se aproxima a do analista que percebe e dá coerência discursiva ao comportamento do sujeito analisado. E isto já estava muito bem posto e preparado no romance de 1939, Enquanto as águas correm.

Posteriormente, essa relação entre memória e regionalismo será redimensionada a partir da psicanálise, na medida em que esta fornece um instrumental conceitual e analítico com o qual autor construirá um paradigma crítico que estruturará sua produção ensaística e ficcional, especialmente nos estudos publicados em 1964 no livro Do Mito à verdade científica e na novela O Príncipe da Vila, de 1982.

É exatamente na íntima junção entre memória, regionalismo e psicanálise, dando unidade a seu projeto literário, que se estabelecerá para Cyro Martins o compromisso entre o artista e seu meio, o homem e sua história, entre o indivíduo e a sociedade. Daí a feição particular da obra de Cyro Martins: o apego ao "terruño", ao particular, expresso na escolha dos temas, na linguagem localizada e a inclinação reflexiva sobre a condição humana, que pertence ao universal.(4)

Na verdade, para Cyro Martins, o valor da obra comprova-se pelas dimensões de sua autenticidade. E esta depende em grande parte do solo humano no qual a inspiração do autor se enraíza. Essas raízes o fazem necessariamente partícipe do campo social.(5)

Dessa forma, o binômio particular-geral, local-universal, está no ponto exato para onde convergem as lembranças da infância e da juventude (as histórias vividas e andadas), a leitura da tradição regionalista e a formação psicanalítica. Essas vertentes tomam corpo em uma obra onde se cruzam e intercruzam a ficção, o ensaio, a memorialística e a crítica, com o fim de atender às vozes campeiras que andam no ar, perdidas, há um tempão, à procura de alguém, que poderia ser eu mesmo, para lhes dar um sentido ...(6)

Ronaldo Machado
é doutorando em Literatura Comparada (Letras-UFRGS)
rsmachado@zipmail.com



NOTAS
(1) ARRIGUCCI JÚNIOR, Davi. Móbile da memória. In: ARRIGUCCI JÚNIOR, Davi. Enigma e comentário: ensaios sobre literatura e experiência. São Paulo: Cia. das Letras, 1987, p. 83

(2) MARTINS, Cyro. Prefácio. In: MARTINS, Cyro. O Mundo em que vivemos. 2.ed. Porto Alegre: Movimento, 1998, p. 11

(3) MARTINS, Cyro. A Dama do Saladeiro. In: MARTINS, Cyro. A dama do saladeiro: histórias vividas e andadas. 2.ed. Porto Alegre: Movimento, 2000, p. 142

(4) CARVALHAL, Tania Franco. Cyro Martins: o local e a infância. Revista de Psicanálise, Porto Alegre, v.3, n.3, dez.1996, p. 358

(5) MARTINS, Cyro. A criação artística. In: MARTINS, Cyro. O Mundo em que vivemos. 2.ed. Porto Alegre: Movimento, 1998, p. 67

(6) MARTINS, Cyro. Apenas um Tapera. In: MARTINS, Cyro. Rodeio: estampas e perfis. Porto Alegre: Movimento, 1976, p. 22



Leia textos citados neste artigo em ESTANTE DO AUTOR


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- Cyro Martins para levar no Bolso
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