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A ALMA EXTRAVIADA DE NETTO | Imprimir |  E-mail

Cesar Augusto Barcellos Guazzelli


A película Netto Perde sua Alma, produzida e dirigida em 2001 por Beto Silva e Tabajara Ruas, é baseada no romance homônimo deste último, que também foi um dos roteiristas do filme, e seu tema é a vida de Antônio de Souza Netto.

Filho de estancieiros, Netto nasceu no Povo Novo (município de Rio Grande) em 11 de fevereiro de 1801 1, e criou-se nos campos da família em Bagé, onde tornou-se muito hábil nas lidas campeiras, sendo reconhecido como emérito cavaleiro 2. Ao final da Guerra da Cisplatina, em 1828, já era Capitão de Segunda Linha, posto que manteve quando se criaram as Guardas Nacionais. Quando se desencadeou a Guerra dos Farrapos, Netto já havia alcançado a patente de coronel, e foi dos primeiros seguidores de Bento Gonçalves. Em 1836, pouco antes da derrota e prisão de Bento Gonçalves na ilha do Fanfa, Netto derrotou o legalista Silva Tavares no Campo dos Menezes, próximo a Bagé, e no dia 11 de setembro proclamou a República Rio-Grandense. Promovido a general, após a morte de João Manoel de Lima e Silva tornou-se Comandante em Chefe das armas rebeldes até o retorno de Bento Gonçalves. Durante a guerra, foi mentor do regimento de lanceiros negros, comandados pelo coronel Teixeira Nunes. Depois do armistício, que teria assinado a contragosto, retirou-se para o Estado Oriental, onde estabeleceu-se na estância de Piedra Sola, nas cercanias de Tacuarembó. Em 1851 secundou as tropas imperiais que entraram no Uruguai para combater os blancos de Oribe, formando a Brigada de Voluntários Rio-Grandenses, que no ano seguinte participaria da guerra contra Rosas. Recebeu então o título de Brigadeiro Honorário do Exército Imperial. Em 1864 apoiou o pronunciamiento do colorado Venancio Flores contra o governo blanco de Berro e Aguirre, e forçou a entrada do Império no conflito, o que motivou a abertura de hostilidades de Solano López contra o Brasil. Depois de muitos anos, regressou ao Rio Grande com sua Brigada para combater os paraguaios em Uruguaiana, portando a bandeira tricolor da República Rio-Grandense. Combateu em Estero Bellaco e Tuyutí em maio de 1866. Faleceu no Hospital de Sangue de Corrientes em 1º de julho de 1866 vítima de malária.

O filme inicia com os últimos dias de Netto no hospital de Corrientes (Ato I: O Capitão De los Santos), continuando-se em flashbacks para as vésperas do combate no Campo dos Menezes em setembro de 1836 (Ato II: Milonga), a batalha e a proclamação da República em 11 de setembro (Ato III: República), depois do armistício em março de 1845 (Ato IV: As Encantadas), o encontro e romance com Maria Escayola (Ato V: Senhorita Maria), encerrando-se novamente no hospital no dia 1º de julho de 1866 (Ato VI: O Sargento Caldeira) 3. Ancorando-se em distintos momentos da vida do general, reconstrução dos seus atos e da sua personalidade ganha verossimilhança, e o herói se justifica na saga dos campos rio-grandenses, marcadas pelos muitos anos de guerras.

No ato I, recebendo no hospital de Corrientes a visita do sargento Caldeira, um negro que o acompanhou desde a Guerra dos Farrapos, sustenta que as lutas no passado foram "por idéias" e "não por ouro" como nesta do Paraguai, numa clara referência aos aspectos econômicos que envolveram a Guerra da Tríplice Aliança. Bem no início, o corpo de Netto estendido no leito, mal coberto por um exíguo pano, com cabelos e barbas longas e exibindo uma grande ferida 4 , não por casualidade lembra a figura do Cristo retirado da cruz; com efeito, a seqüência mostra cenas de um homem generoso, piedoso com os infelizes (De los Santos) e sequioso de justiça para com os opressores (o sádico cirurgião Phillip Blood 5 e o cruel major Ramirez). Na lembrança do diálogo com o inglês Thornton e com Maria Escayola, ele mostra-se um republicano radical, contrário à política interesseira dos ingleses e capaz de afirmar que "os caudilhos são uma excrescência", uma suprema ironia com sua própria condição.

O ato II inicia com uma das cenas mais importantes na recriação do Rio Grande do passado, quando Netto e Teixeira Nunes - o Gavião - se acercam de uma estância procurando por cavalos: recebidos pela dona e sua nora, armadas, e inquirindo fortemente sobre a procedência dos estranhos, essas mulheres representam muito bem uma realidade de homens ausentes, onde elas assumiam os negócios e a segurança dos lares; na seqüência, quando as pessoas se dão a conhecer, também fica muito clara a pequenez desta elite estancieira, onde as poucas famílias sabem perfeitamente quem são os demais membros de sua classe social, de onde vieram e onde se localizam. Netto e Gavião são reconhecidos pelo jovem escravo Milonga, que os idolatra como protetores dos escravos e fiadores de sua futura liberdade: a luta dos Farrapos se identifica aqui com a liberdade dos cativos, e o acampamento mostra uma multidão de negros, soldados e vivandeiras, entusiasmados ao som dos seus batuques, e orgulhosos de suas vestes vermelhas 6.

No ato III, durante os preparativos para o combate contra os imperiais, os diálogos de Netto, Gavião e outros oficiais enfatizam a indignidade da escravidão, uma das tantas faces opressivas do Império. A luta que se seguirá pertence a brancos e negros, irmanados no ideal da liberdade republicana, aparecendo pela primeira e única vez no filme a menção ao federalismo, uma das bandeiras mais caras para os rebeldes. Na conversa com o sargento Caldeira, Netto indaga o porquê dos negros abandonarem a mitológica Serra das Encantadas, santuário dos escravos fugidos, pela luta junto aos farroupilhas, ao que o negro lhe contestou sobre a necessidade de "fundar um país", e este para ele era o destino da revolta. Na batalha são destacados os lanceiros negros, pelo seu denodo e intrepidez. No momento épico do filme, a proclamação de Netto criando a República Rio-Grandense, surge a bandeira tricolor 7, aqui um símbolo de liberdade para brancos e negros.

A mesma tricolor, desbotada e em frangalhos, inicia o ato IV, no dia seguinte à assinatura da paz com o Império. Este é o ponto mais alto do filme no que diz respeito à condição social de uns e outros: o acordo, que preservou a condição social dos estancieiros, além de garantir seus postos no exército imperial, não resultou em vantagens para os cativos que haviam sido alforriados para incorporarem-se às hostes rebeldes. Soldados negros, entre eles Milonga, discutem revoltados a promessa não cumprida de garantir-lhes a liberdade, e planejam fugir para a Serra das Encantadas; debalde o sargento Caldeira tenta explicar que "tudo na vida é um fato político", e que os chefes farrapos precisavam assinar a paz. Em Triunfo, Netto comenta com Joaquim, filho de Bento Gonçalves 8, que os negros foram os mais prejudicados pela guerra, "só eles perderam", e que se retirará para o Uruguai com duzentos seguidores.

O ato V, passado em 1861, mostra a vida do general no exílio. A imponência da fortaleza que construiu na estância de Piedra Sola representa tanto o poder econômico de Netto, quanto a condição do caudilho que já enfrenta novos inimigos. É uma surpresa sua revelação tardia de amigo das letras, cochilando à beira do fogo com um exemplar de A Divina Pastora 9; mais adiante, no diálogo com Maria Escayola, referem-se ao primeiro encontro de ambos numa livraria de Montevideo, onde o general adquiria romances franceses. Esta face letrada contrasta com sua longa carreira de armas, e Maria indaga muito do general sobre a presença de duzentos escravos em sua estância 10, e Netto alega terem-no acompanhado por livre vontade desde o Rio Grande; sobre sua milícia privada, responde: "Eu tenho muitos amigos. E meus amigos têm muitos amigos", um alto momento de síntese do poder pessoal dos caudilhos.

O ato final, passado na madrugada de 1º de julho de 1866, após o justiçamento de Ramirez, Netto mantém um interessante diálogo com o sargento Caldeira enquanto veste o uniforme completo: primeiro justifica que um oficial deve estar sempre bem apresentado, o que contradiz seu próprio passado, onde criou fama de um aspecto pouco marcial, usando poncho e chapéu de abas largas de campeiro; acrescenta que isto lhe permitiu uma entrevista com o Imperador sem descobrir-se, porque "milico só tem obrigação de tirar o chapéu para as damas". Relatou ainda a Caldeira que, a uma menção de Pedro II sobre a belicosidade dos rio-grandenses, teria respondido que ela não era natural, mas conseqüência de duzentos anos de guerra na fronteira, e que para garantir o gosto pelas belas artes da Corte, que lembrava Atenas, era necessária a presença de Esparta. Mais uma vez aparece uma veia literária no mesmo homem que continua como comandante de armas, e que estava em luta contra o governo uruguaio. A cena final, com a barca de Caronte e o pagamento do óbulo, uma vez mais aponta para um Netto que se tornou amante da literatura.

O filme recebeu algumas críticas que o apontaram como mais uma apologia do passado rio-grandense, que me parecem exageradas. O único momento em que se mostra épico é na proclamação da República Rio-Grandense, que foi uma bravata - ou "gauchada - de Netto, instigado por alguns republicanos mais radicais; sequer as poucas cenas de combate são portentosas; ao contrário, mostram os sofrimentos, as dores e as sujeiras dos campos de batalha. É certo que Netto não era um abolicionista, mas tentou preservar os cativos que haviam servido nas tropas farroupilhas, e seu amigo Teixeira Nunes comandou os lanceiros negros, e com eles foi morto na guerra. Também é um pouco inverossímil o grau de instrução de Caldeira, capaz de ler cartas rebuscadas de Garibaldi e Almeida, e de compreender as metáforas do general, numa época em que o analfabetismo era a regra..

A empatia de Netto com seus comandados era aquela comum aos caudilhos do Prata, que faziam dos seus peões as milícias pessoais. É significativo que em nenhum momento do filme Netto se refira a si ou aos seus companheiros de armas como "gaúchos", um anacronismo 11 tão comum em obras do gênero. Por outro lado, a presença de negros libertos era uma usança desde a invasão luso-brasileira da Banda Oriental em 1811, e o serviço militar foi desde então uma estratégia para fugir da escravidão, e o filme mostra com propriedade a grande presença de negros nas tropas farroupilhas e, por outro lado, também contempla a frustração e o desespero destes homens, que ao final da luta não obtiveram a liberdade esperada.

Em se tratando de uma sociedade pastoril e guerreira, e portanto muito masculina, as mulheres aparecem secundariamente, mas são apresentadas em três situações muito distintas: assumindo os negócios das estâncias, abandonadas pelos maridos e filhos que se incorporavam aos exércitos; acompanhando as tropas, como vivandeiras ou "chinas de soldado", o que foi uma realidade peculiar ao espaço platino; e uma rara presença de intelectual urbana, pacifista e crítica mordaz da sociedade de então, onde os interesses econômicos e políticos destas elites masculinas se sobrepunham a quaisquer projetos de uma melhor qualidade de vida para todos.

Tabajara Ruas é mais um dos tantos escritores rio-grandenses oriundos da fronteira, e dela fez cenário para vários dos seus livros. Além de Netto Perde sua Alma, a Guerra dos Farrapos foi tema de Os Varões Assinalados; ambientado em sua Uruguaiana escreveu Cerco e Morte de Juvêncio Gutierrez, sobre um contrabandista de fronteira, e em parceria com o jornalista Elmar Bones produziu A Cabeça de Gumercindo Saraiva, uma biografia do caudilho. A temática, portanto, é familiar para o autor. O filme, não se pode esquecer, é uma ficção, que se ampara numa obra de ficção anterior, o romance que lhe é homônimo; este, por sua vez, se fundamenta em uma ou mais versões da história, e o faz apropriadamente, sem "erros históricos" visíveis. Assim, parece muito ranço alguns historiadores discutirem aspectos que são polêmicos na historiografia dentro de uma obra ficcional, atrás de uma "verdade" que se renova a cada investigação. Mais importante, Tabajara Ruas, dispondo dos esparsos dados biográficos existentes sobre Antônio de Souza Netto, escreveu um belo romance, e dele extraiu um filme empolgante.

César Guazzelli
é Professor Adjunto de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul


NOTAS
1) ROSA, Othelo. Vultos da Epopéia Farroupilha. Porto Alegre: Globo, 1935, p. 37. Segundo Urbim, os registros confirmam seu nascimento em 25 de maio de 1803. URBIM, Carlos. Os Farrapos. Porto Alegre: Zero Hora, 2001, p. 74.

2) Giuseppe Garibaldi afirmou que Antônio de Souza Netto era "o modelo acabado do cavaleiro". DUMAS, Alexandre. Memórias de Garibaldi. Porto Alegre: L&PM, 1998, p.57.

3) No livro a organização dos capítulos é um pouco diferente: Corrientes (1º de julho de 1866), Reunião no Morro da Fortaleza (8 de abril de 1840), Dorsal das Encantadas (11 de setembro de 1836), Último Verão no Continente (2 de março de 1845), Piedra Sola (26 de junho de 1861) e Corrientes (1º de julho de 1866).

4) Os ferimentos de Netto são motivo de controvérsias. BONES, Elmar. Em Busca do General. In: RUAS, Tabajara. Netto Perde sua Alma. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1998, p.26-27.

5) No livro o tenente-coronel médico estrangeiro chama-se Philippe Fontainebleaux. A troca da nacionalidade para inglesa e do nome para Blood não há de ser casual!

6) O vermelho foi usado por Artigas, símbolo de liberdade herdado da Revolução Francesa; nos anos 30 foi adotado pelos federalistas de Rosas, e em 1835 o uruguaio Rivera criava o partido colorado; os farroupilhas o adotaram em lenços e camisas, além da faixa na bandeira republicana; voltaria para a Europa com Garibaldi, e a unificação italiana se daria sob o signo da camicia rossa.

7) A bandeira da República Rio-Grandense só seria criada pelo decreto de 12 de novembro de 1836, assinado pelo presidente em exercício José Gomes Vasconcellos Jardim e pelo ministro Domingos José de Almeida.

8) No livro o diálogo é com o então capitão Manoel Luiz Osório, que lutou pelos imperiais.

9) Romance de Caldre e Fião, que critica acerbamente os farroupilhas.

10) Havia muitas pendências entre rio-grandenses e os governos orientais, especialmente quando do blancos em relação à presença de escravos nas suas fazendas. Por outro lado, a fuga de cativos para o Uruguai aumentara desde a abolição da escravatura em 1843.

11) A palavra se tornou sinônimo de rio-grandense apenas no século XX.