ABRINDO A PORTEIRA |
Revista Eletrônica CELPCYRO-Vol 2 - ISSN 2177-6598 - Artigos |
À memória de Cyro Martins, mestre e precursor do romance agrário* Alcy Cheuiche - Escritor
O homem deu mais uns passos e chegou na esquina. Uma estrela cadente deslizou repentina no céu. Um galo cantou. Cachorros latiam. Os cachorros estavam sempre latindo em Boa Ventura. Cidadezinha triste e envelhecida, situada nos confins da fronteira do Brasil com o Uruguai. João Guedes se chamava o homem. Um dos muitos desempregados do frigorífico. Quase quatrocentos no total. Um número colossal para o tamanho da cidade.
João Guedes baixou os olhos para os pés e abafou um palavrão. O velho Lelo nunca o deixara dizer nomes feios. Mas aquele maldito chinelo de dedo rebentara outra vez. Também, desde que soubera da desgraça ( não diz desgraça, desgraçado, não agoura o teu pai) João saíra a pé do acampamento dos sem-terra e caminhara seis léguas quase sem parar. Seis léguas. Isso era linguagem do velho. Trinta e seis quilômetros pela beira da estrada de terra. Sem coragem de atalhar pelos campos. Os fazendeiros sempre desconfiaram do gaúcho a pé. Andarilhos. Vagabundos. Ladrões de ovelha. E o rosto de João ficou quente como se tivesse levado outra bofetada.
O homem barbudo agachou-se na esquina, ao lado da cruz de ferro, e mediu o estrago do chinelo de borracha. A alça rasgara completamente. O pedaço de arame que torcera por baixo da sola não servia mais para nada. João Guedes segurou o chinelo na mão direita e teve vontade de atirá-lo longe. Olhou para a cruz e arrepiou-se. Desde pequeno, quando passava de noite por ali, sentia medo. Era a cruz do assassinado. Um jornalista que ousara desafiar o Coronel Ramiro, no tempo das revoluções. João conhecia a história pelo pai e o nome do homem estava escrito na placa da rua. Dr.Alcides Viana. O assassino mandado, um tal de Fagundes, diz que morreu louco num hospício de Porto Alegre. A noiva do jornalista, a Dona
Clara, mesmo depois de casada com outro, vinha todos os anos, no dia da morte, botar flores naquela cruz. Vinha no trem do Alegrete e voltava no mesmo dia. O velho Lelo era ferroviário e ficava cuidando a chegada da mulher. É jasmim que ela bota na cruz. Uma flor cheirosa. De noivado.
João ergueu-se ao lado da cruz e enfiou o chinelo no bolso apertado da calça de brim. Ajeitou o boné sobre os olhos e seguiu caminhando, meio rengo, sentindo no pé esquerdo a aspereza da calçada. Hoje só me vem maldade na cabeça. Mas a culpa é minha. Desde que entrei na cidade, estou remanchando para não chegar na casa do velho. E se a notícia não é verdade? E se foi inventada só pra eu saí do acampamento? Essa gente que manda em Boa Ventura é sempre a mesma. O prefeito, o Dr.Ramirinho, é neto do mandante do crime. Herdou uma légua de campo e botou tudo fora no jogo e no rabo das chinas. Nem sei quanto é uma légua de campo. Mas pelo que o povo diz, dava para assentá umas mil família de colonos. Uns italiano da serra compraram tudo pra plantá arroz e soja. E quebraram também junto com a fábrica de óleo vegetal. Tem caveira enterrada em Boa Ventura. Caveira de gente. Muita caveira de gente. Até a caveira do meu avô. Mas o Ramirinho conseguiu ser nomeado prefeito durante a ditadura. E ficou rico de novo. Rico pra se elegê deputado e, no ano passado, prefeito outra vez. Mas não tirou um real do bolso para salvar o frigorífico. Dizem até que foi ele que ajudou a quebrá.
Perto dos trilhos da ferrovia, João Guedes estacou novamente, o coração batendo forte. As pernas já iam dobrar outra esquina, quando viu o carro da polícia. Parado na frente da estação abandonada. Sofreu um choque que lhe sacudiu todo o corpo. Um auto da Brigada. Na certa tão esperando por mim. E logo viu tudo negro diante de si. A cadeia de novo. As surras durante a noite. O Dr.Hélio Bica, com a metade da cara puxada por um derrame, gritando com voz esganiçada. Vagabundo! Só pode sê tu que roubô ovelha do meu campo. Fruta podre cai no lado do pé. E espumando pela boca torta: teu avô era ladrão de ovelha. Morreu com um tiro na cara. Um tiro de 44. Tu tem o mesmo nome daquele sem-vergonha. E deu-lhe um tapa na cara com a mão suada e fraca. Só doeu pela vergonha. Mas parece que doeu mais.
Espiando da esquina, o coração aos corcovos, João pensou em fugir para o Uruguai. Bastaria recuar devagarinho e pender para a direita, sem correr, sem se afobar. Outra frase do velho Lelo veio clarear-lhe a cabeça. Seria como pular da panela pra dentro do fogo. Se a polícia uruguaia me pega, me traz preso pra cá. Eles também tem medo dos sem-terra. E de qualquer jeito, depois de saber do velho, eu tenho que voltar. E viu a barraca de lona preta com a mulher e os filhos dentro. Enxergou como se visse do alto, o acampamento comprido, amontoado num lado da estrada. Metade dos desempregados do frigorífico estava lá. Dois anos e três meses de vida de cigano. Cada carro que passava de noite era uma ameaça de morte. Era fácil dar uns tiros nas barracas e fugir. No princípio, queixaram-se na delegacia. Uma vez até interromperam a estrada, com ajuda dos padres e de dois deputados de Porto Alegre. A criança morta foi enterrada com muitos discursos. Mas ninguém prendeu o Júlio Bica, filho do Dr. Hélio, que todo mundo sabia que dava tiro nas barracas. João Guedes não saberia dizer quanto tempo ficou ali parado. Até que ouviu roncar o motor do carro e brilharem as luzes vermelhas na escuridão. Os cachorros continuavam a acoar com insistência, um deles por detrás do muro às suas costas. O auto da Brigada se foi na direção da aduana uruguaia. O desempregado ainda ficou alguns momentos espreitando da esquina e depois decidiu-se. Tirou o chinelo do pé direito e colocou-o no outro bolso lateral da calça. De pés descalços, seria mais fácil se tivesse que correr. Mas não estava longe da casinha do velho. Era só atravessar o pátio da estação ferroviária e seguir pelos trilhos na direção do rio. Todo mundo dizia trilhos pela força do hábito. Há muitos anos não se ouvia apito de trem em Boa Ventura. Por onde antes passavam os trens de gado e de passageiros, ficara uma rua calombuda e curva, com as casinhas dos ferroviários apodrecendo dos dois lados.
João puxou o boné bico de pato para junto dos olhos e passou por dentro da estação abandonada. Quando pequeno vinha todos os dias assistir a chegada e saída dos trens. A plataforma deserta povoou-se na sua mente com os viajantes em movimento. Com os vendedores de laranjas e rapadurinhas, seus companheiros de biscates Com os carregadores suarentos. E com o Chefe da Estação, gordo e imponente, com seu e quépi vermelho que lhe dava ares de milico graduado. O velho Lelo era um modesto tuco, um consertador da estrada de ferro. Mas o filho se orgulhava da profissão do pai. E muitas vezes saíra com ele no carrinho com rodas de trem, que os operários faziam andar com a força dos pés. Quando a ferrovia quebrou e os trilhos foram arrancados, João já era mocito mas chorou como uma criança. O velho Lelo também ficou abichornado por muitos dias e voltou a fumar. Uma desgraça em cima da outra. O câncer no pulmão apareceu na chapa quase ao mesmo tempo que o frigorífico fechou. O velho fez tratamento na Santa Casa, em Porto Alegre, enquanto tiveram dinheiro para pagar a passagem de ida e volta no ônibus. Depois não foi mais. E agora talvez estivesse morto, que Deus o livre, e eu aqui louco de medo de ser preso ao chegar na casa dele. E tudo por causa de uma ovelha que meu avô roubô, sabe lá Deus há quantos anos, para os filhos não passarem fome.
Escondido atrás de uma árvore do pátio cercado com trilhos velhos, cravados como estacas, João Guedes respirou finalmente em paz. Cheiro bom de horta cuidada. Acariciando a cabeça do cachorrinho Amigo, ficou bombeando o silêncio na casinha do pai. Durante a caminhada, desde o acampamento montado na divisa da Estância dos Salsos, vinha imaginando o velório. O povo amontoado na salinha estreita em volta do caixão. As velas alumiando a cara branca do morto. A tia Picucha, toda de preto, arrinconada num canto. O vozerio dos borrachos que sempre aparecem em velório de pobre. E ele sem poder contar ao pai a notícia que tanto esperara. A notícia que Lelo Guedes esperara toda a vida, desde que a família fora expulsa da Estância dos Salsos. O seu Bentinho, dono do campo, se enforcara de vergonha e o agiota Júlio Bica tomara conta de tudo, deixando apenas no campo a marca das taperas. Correra uma cerca de arame de sete fios e mandara botar no corredor uma porteira grande, toda de madeira de lei. O velho Lelo tinha doze anos quando a família foi expulsa e quinze anos quando o pai apareceu morto, o rosto escangalhado por um tiro de 44. A polícia nunca descobriu o criminoso. E aquela porteira, sempre com corrente e cadeado grande, era o símbolo de toda a desgraça da família.
João Guedes respirou fundo e sorriu. Tinha conseguido chegar na casa do pai sem que a polícia visse. Ia contar tudo ao velho. Na noite de amanhã, nós vamos invadir a estância dos Bica, abrir aquela porteira junto com a nossa gente. Um advogado veio de Porto Alegre e nos contô tudo. A fazenda não produz quase nada e foi desapropriada pelo Incra. Era melhor que os desempregados do frigorífico ocupassem tudo, antes que viessem outros de mais longe. E o chefe do acampamento prometera que ele, João Guedes iria abrir a porteira. Ele que tinha levado o tapa na cara. Ele que tinha o nome do avô.
Na primeira batida leve na porta, ouviu barulho dentro da casa. Um ruído sincopado, de quem pedala uma máquina de costura. É a tia Picucha com a máquina da vovó Maria José. Uma batida mais forte e ouviu barulho de chinelos arrastados no chão. Uma luz por debaixo da porta. A fresta precavida e o rosto enrugado da tia que o olhava desapontada. O que é que te deu, menino? Onde é que tu andava? Te esperamo até quase noite, despois tivemo que enterrá o Lelo. Onde é que tu te meteu? João Guedes ficou olhando a tia vestida de preto e vendo o coveiro ajeitando a sepultura, alisando a terra fofa com o dorso da pá. E foi crescendo diante dos seus olhos enuviados uma grande porteira. Uma porteira fechada, com corrente e cadeado enferrujados, toda roída de cupins.
(Publicado originalmente In: "João Guedes" Segundo Caderno, Zero Hora, Porto Alegre, 12/6/99)
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