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SÁBADO, 8 DE MAIO DE 2004 - página 7 ARTES
Cultura reproduz artigo inédito de Cyro Martins. Autor da trilogia do Gaúcho a Pé, o escritor e psiquiatra falecido em 1995 analisa uma série de desenhos de Edgar Koetz (1914-1969). São retratos feitos pelo artista plástico porto-alegrense durante internação no Hospital São Pedro, há 40 anos, em maio de 1964. A série está em exibição no Margs, em Porto Alegre, a partir da próxima terça-feira. O sentido de uma obra Tenho diante de mim, já faz alguns dias, 13 desenhos de Edgar Koetz, que seu filho Celso me trouxe com a intenção de que eu, na qualidade de psicanalista e escritor, faça uma apreciação lítero-psicológica dos mesmos. São retratos de doentes mentais crônicos, pacientes do velho Hospital São Pedro, onde trabalhei durante 20 anos. De maneira que, ao contemplar estas figuras que a mão do artista retratou magistralmente, tenho a nítida impressão de estar me deparando com o conhecido. Quase todos estão de corpo inteiro, de pé ou sentados. Chama a atenção, à primeira vista, as feições do semblante, pelo expressivo de sua realidade. Mas não se trata só da realidade exterior, o que seria pouco, parecido a uma fotografia, porém do mais difícil, que é a captação do mundo interno daquelas criaturas. Corno teria acontecido essa aventura insólita do famoso artista plástico Edgar Koetz? Ora, sabemos que ninguém pode dizer que com ele isto ou aquilo jamais ocorrerá! Pois com Edgar Koetz aconteceu. Estando radicado em São Paulo, em 1964, de retorno de Buenos Aires, onde viveu anos de sua vida artística, sofreu inesperadamente uma grave injúria, que sua suscetibilidade não suportou. Em conseqüência, o pintor entrou em depressão e se entregou ao alcoolismo. Seus familiares trouxeram-no para Porto Alegre e aqui não tiveram outro recurso senão interná-lo no Hospital São Pedro, na divisão de pensionistas, permanecendo lá 30 dias. Nesse período fez 24 desenhos, tomando como modelos os pacientes crônicos do hospital, homens, mulheres e adolescentes. Logo me chamou a atenção o fato do artista ter permanecido 30 dias internado e feito 24 desenhos. Em seguida concluí que os seis primeiros dias foram dedicados à desintoxicação alcoólica, e os outros 24, aos desenhos, através de cujo processo criativo escaparia do mundo terrorífico que o jogara no hospício. Através da arte, a sua grande defesa, recuperou a normalização da identidade em crise. Tomou como modelos pacientes crônicos, em geral esquizofrênicos, já bastante deteriorados psiquicamente. Mas ele não fez o que se chama arte patológica. Não era um alienado pintor, era um pintor entre alienados. Atuou consciente do seu métier. Na história das artes plásticas, a raríssimos pintores e desenhistas de categoria terá acontecido oportunidade semelhante. O nosso artista deu uma extraordinária demonstração de suas reservas de saúde mental ao atinar sem demora com a oportunidade singularíssima que a desventura lhe proporcionara, pondo logo em ação seus dinamismos criativos, capazes de explicitar processos psicológicos deteriorantes, influindo na fisionomia e na postura corporal das infelizes criaturas que o cercavam. Se a matéria-prima estava ali, por que não aproveitar a chance para realizar uma obra original? Embora seus modelos fossem na maioria pacientes crônicos e autistas, e por isso mesmo se prestavam, sem o saber, para seus estudos, Edgar Koetz soube captar a configuração que distinguia as disparidades corporais e expressivas dos tipos da sua coleção. Os alcances de sua imaginação criativa foram atrás do mundo que se ocultava com as máscaras estereotipadas, estampando clichês fisionômicos irremovíveis e posturas corporais esquisitas. Um deles é o retrato acabado do delírio crônico persecutório. Alguns adolescentes, sentados, escolhidos, são a própria imagem da demência precoce, confirmando a concepção kraepeliniana de doença incurável e deteriorante. Os modelos eleitos por Koetz não são figuras estáticas, como protótipos. O artista vai em busca da singularidade individual e por isso a sua coleção não se repete, formando uma seqüência de imagens, um certo ritmo existencial, embora deteriorado. São figuras que assumem detalhes de anotações psicológicas, sobrando sempre espaço para o detalhe marginal e para a fantasia do espectador. Seu desenho é de mestre, bem delineado. Os personagens são tão bem caracterizados que podemos diagnosticar o quadro clínico de cada um. Tem-se a impressão de que o artista foi obstinadamente à procura da captação da universalidade da loucura através das singularidades individuais. Não se trata, pois, de obra de artista alienado, mas do aproveitamento, através do processo criativo, do seu arte-fazer, como meio de valor terapêutico para elaborar suas vivências psicóticas, as angústias daqueles dias infelizes. Assim o artista pôde superar suas perdas dolorosas e reelaborar a sua visão de mundo e deixar o hospital. Não sendo crítico de arte, não me cabe classificar esta série de desenhos dentro de uma escola ou de um período da evolução das artes plásticas. Fico com os aspectos subjetivos da série. Para mim, seu campo de significados se estende além das definições e fica girando ao redor de uma idéia fundamental que anseia pela transfiguração estética. Querer explicitar as nuanças de experiências vividas em aspectos objetivos é o ideal do artista. O nosso artista venceu o quadro depressivo e, já fora do hospital, iniciou uma nova fase de sua atividade criadora. Passou a pintar quadros de um colorido muito vivo, como nunca o fizera. Creio que teria entrado numa fase hipomaníaca, estado mental intermediário entre a inibição depressiva e a exaltação, porém sem perder a disciplina da autocrítica. Com essa série de quadros, o artista encerrou sua carreira e sua vida, pois em seguida adoeceu gravemente e retomou a Porto Alegre, onde faleceu. Cabe aqui, como remate, a citação de um trecho do ensaio sobre A Criação Artística, pertencente ao meu livro intitulado O Mundo em que Vivemos: "O ato da criação artística requer uma certa predisposição, que é a dimensão poética do espírito. Esse acesso às emoções que comandam sua vida interior põe o artista defronte ao outro si mesmo, assim como a associação livre do paciente e a atenção flutuante do psicanalista, colaborando, produzem o ‘insight’ na situação analítica. Por isso o ato de criar é concomitantemente recriação. Na situação analítica, como é próprio da técnica do ofício, atualizam-se maneiras arcaicas de simbolização através da transferência, como base de partida para a cura. Na operação intelectual criadora, sob a provocação dos motivos imediatos mais aparentes, recria-se num enlevo de cisma, sublima-se, conjurando o passado oculto em áreas menos racionais do psiquismo, com propósitos que reúnem o desejo de restaurar e a necessidade de gratificações da libido. Essa a razão de ser a experiência criadora um ato unificador por excelência, uma tentativa de integração dos objetos introjetados. A obra de Proust representa, possivelmente, na literatura deste século, o exemplo mais bem logrado desta asserção. Esse esforço de integração do ego é animado pelo ideal de reparação e o intento de domínio da angústia emergente, com raízes na posição depressiva. Por essa razão, os homens sempre procuraram, instintivamente, na magia da arte, o seu poder de cura”. |