Sobre Enquanto as Águas Correm * |
Fortuna Crítica - Artigos |
Mário Alvarez **
Tendo-se em conta o sentido do último livro de Cyro Martins, publicado há dois anos, era de prever que o autor abandonaria o gênero regionalista, como o fez agora em seu recente romance.
Sem rumo o livro seguinte, publicado há dois anos, era já uma novela, mas ainda regionalista. Em algumas de suas páginas, seria preferível que houvesse mais parcimônia no emprego do colorido vocabulário rio-grandense. Mas isso não podia obscurecer o valor da novela como realização literária e como contribuição ao estudo de um tipo brasileiro, qualidades com as quais se projeta para além do âmbito regionalista, como bem acentuou Manuel Bandeira em um pequeno e vivo estudo crítico.
Retrata-se no livro o drama doloroso que vem vivendo o homem que povoa a nossa campanha, drama que era chocante naquele período de florido caudilhismo - 1936. Um livro corajoso, verdadeiro, sentido, e que não teve no Rio Grande, ao que nos parece, a repercussão merecida, em vista do interesse que apresentam para nós os problemas focados.
Houve, e tem havido, mais preocupação com os meninos de engenho, com a vida dos molequezinhos da Bahia, do que com a vida de Chiru, personagem de Sem Rumo, sobre o qual se desencadeiam as forças que vêm alterando de um modo lento e definitivo o meio social do homem dos campos rio-grandenses.
Guri de galpão, judiado e surrado por muitos, criado um pouco por todos - pelos velhos patrões decadentes, pela figura sombria e temida do capataz, Chiru vive sem amor e sem amparo, cresce sem o cultivo de aptidões para o trabalho e sem instrução, a não ser os rudimentos de letras ensinadas à palmatória por um professor rural, bronco e bêbado.
Sente-se no guri a força virgem e o ímpeto lutador da raça, a viver potencialmente ao lado da felicidade descuidada do ser infantil que se integra, por laços mágicos, ao seu ambiente e ao seu destino.
As aquarelas de cores límpidas e ingênuas, traçadas com ternura e poesia pelo escritor, vão-se ensombrecendo. Cresce o guri, surge a rebeldia, logo vencida, em face da realidade hostil e centraliza-se então em sua pessoa o drama da desadaptação do gaúcho, vítima da desorganização do trabalho rural promovida pelo progresso e pela ação de fatores econômicos, e vítima do desamparo espiritual e material em que foi conservado pelos dirigentes políticos. Estes o prejudicaram ainda, perturbando seu espontâneo esforço de adaptação e desviando-o do trabalho para as lutas políticas e caudilhescas.
Valentias bravateiras, capanguismo, criminalidade regada a álcool, paixões partidárias tintas de sangue, tragicomédias eleitorais - eis o fundo de cena que aparecia, às vezes em heróica estatuária, o "centauro dos pampas", como ardilosamente o chamavam.
O atribulado ambiente rio-grandense daquela época ilustrava, no entanto, ao vivo, as páginas da novela. Mas passemos, depois desta breve visão sobre a obra anterior de Cyro Martins, ao seu último livro - Enquanto as águas correm.[1939]
Conserva o autor as raízes que o prendem ao seu meio, mas a realização literária nada tem que ver com o regionalismo. O estilo se enriquece de uma limpidez e de uma pureza de tons que não se está habituado a encontrar na moderna literatura nacional, revelando cuidado de fatura, ausência de artifícios, exata adaptação aos temas. E por toda parte, no livro, anda esparsa uma viva e fragrante poesia.
Decorre a ação do romance no ambiente de uma cidadezinha, em torno da vida de seres humildes que em seus subúrbios se acolheram, arrastados, como Chiru, do meio rural para o citadino. A cidadezinha, o seu mundo social, o rio claro e lento, às vezes crescido no ímpeto das enchentes, sobressaem em excelentes descrições e disputam em certas páginas o lugar das figuras humanas.
Esse relevo, que tomam o meio físico e o meio social, constitui um aspecto interessante do livro, mas não se faz sem determinar prejuízos. Porque às vezes permanecem demasiado nos "cortes" e se estendem pelos capítulos, cenas e episódios que ganham excessiva vida própria, tendo com o tema central - que é figura de Izidro - somente uma relação de contigüidade (as páginas da enchente, os episódios médicos, as recordações do Dr. Ladislau). No tronco da narração enxertam-se e brilham como parasitas, desviando o interesse do leitor e causando um roubo à força total do romance.
Na psicologia do personagem central é que se concentra o maior interesse do romance. Ela é feita em tons velados, em linhas que devem ser compostas pouco a pouco na compreensão do leitor. Somente assim vem a ser iluminada a sombra estranha que criou o romancista.
Izidro chega a um recanto da fronteira do Rio Grande (e com sua chegada se inicia a narração) como uma vida acabada, um homem esgotado por uma existência errante e aventureira. Na verdade, era uma alma inquieta e insatisfeita, que em vão se procurara, e que a força dos acontecimentos (sabemos depois que vinha expulso como extremista) impelia abruptamente para o seu destino.
Ele se vê sozinho, a caminhar sem rumo sob a luz desconhecida de um fundo crepúsculo dos pampas que se abria, cheio de revelação, como um "painel" de "silêncio". E aí começamos a perceber (porque tudo é apenas sugerido tanto ao leitor como à consciência do próprio personagem) porque sua alma "renasce" e abandona a tumultuária existência anterior, inclinando-se para os seus profundos desígnios. Sem crenças, sem fé, sem ideal, Izidro iniciará, não obstante, a partir daquele dia, uma existência de renúncia e isolamento, perdão para a vida, ternura e compreensão para os humildes. Apenas o guiam os impulsos secretos que haviam disputado (e continuarão disputando) a direção da sua personalidade.
Nesse fino jogo, em que se traduz afinal a inconsciência da conduta humana, vai-se tecendo a alma do personagem e com tanta autonomia, que o crítico se pergunta se o autor não será guiado apenas pelo dom da criação artística, ignorando ele próprio o que se passa misteriosamente na vida que criou.
Descreve-se no capítulo segundo do romance a pitoresca cena em que se apresenta na venda de Pacheco, anunciando-se, de improviso, como ferreiro em busca de trabalho. E logo a seguir o delicioso diálogo com Carlos, estudante cheio de poesia e do romantismo da adolescência, diálogo no qual Izidro solta a imaginação para brincar com o rapaz como um gato bondoso com um simpático ratinho.
"Humour" e sonho, ironia e compensação da realidade são, juntamente com a inconfessada atitude de renúncia, os fatores de que ressalta a capacidade de adaptação do personagem, adaptação que pode se afigurar ilógica, e dependente de um capricho do escritor, a um leitor apressado. Porque ele está no seu mundo em toda parte e em qualquer lugar, orientando-se em todos os sentidos. De um homem errante entregue ao rumo do acaso, no início, integra-se a seguir na vida da aldeia, trabalha a terra com amor, convive com os humildes, para os quais se sente impelido por um vago idealismo messiânico, mas dos quais guarda distância, sempre fiel ao drama profundo do seu ser que não lhe permite achar um sentido nem para sua própria vida ("O que fazer daquela gente que se entregava à sua direção? Era preciso guiá-la. Mas para onde?").
Uma luta contra os gafanhotos, que devastavam as plantações, o atira aniquilado a um leito de hospital, de onde sai a custo para viver em seguida como mendigo, graças à esmola ocasional de um homem que havia ganho uma pequena fortuna e deixa cair em seu chapéu a primeira moeda.
Passa a viver, depois, da caridade de uma prostituta e em companhia de um cão, abandonado e sozinho como ele. É amado por ambos e lhes empresta um pouco de sua alma.
E a narrativa entra assim em um ambiente de irrealidade e assombração.
- "Este é o Imperador".
- "Este é o marechal Deodoro".
Enquanto as águas correm... Que significará este título? Parece sentir-se nele o velho símbolo universal que compara a vida humana à corrente de um rio...
" Ouvido à espreita, numa atitude equívoca, ele esperou inutilmente que a suspeita da aproximação de alguém se confirmasse. A princípio se amedrontou, mas logo sorriu com amargura, refletindo sobre o instante. Estaria, acaso, em situação de recear o que quer que fosse? Mas, pensava, tomara que venha alguém! Entretanto as suas mãos teimavam, empurrando a janela que cedia lentamente. E quando as folhas se abriram, batendo de leve na parede e produzindo um baquezinho abafado, ele aguardou ainda qualquer movimento da velha. Tossiu. A cabeça pesava. Ouvia o ressoar abafado e distante das águas correndo. Uma irradiação de dia próximo ampliava as ruas. As casas e as árvores pareciam mover-se. Conservava uma confusa noção de que era preciso andar, andar sem descanso. Deixou a janela".
" Ouvia o ressoar abafado e distante"... O ressoar das águas do rio crescido, que rolava lá embaixo, junto à cidadezinha, agitado e violento... Mas ouvia também, talvez, a música das outras águas - as do símbolo - as da vida infinita correndo sem cessar.
Porque sentia crescer uma lucidez dolorosa: "todos os vãos da vida se aclaravam, e urgia repelir as memórias, as sugestões afluindo de recantos ignorados do ser. Que nada o importunasse, que aquele momento se prolongasse indefinidamente"...
Assim termina o livro. Em nossa imaginação, vemos Izidro afastar-se nas ruas da cidadezinha já iluminada pelo dia. Ele vai, também, iluminado. Quem sabe, naquela hora de revelação, pôde, enfim, conhecer os seus segredos...
* Artigo publicado no "Jornal do Estado". Porto Alegre, 8 de setembro de 1939,
* * Nota de Cyro Martins sobre Mário Alvarez Martins
Mário Alvarez é quase um pseudônimo de Mário Alvarez Martins, pois todos o conheciam somente por Mário Martins, eminente psicanalista, fundador da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre, recentemente falecido. Este é o único artigo literário que Mário escreveu e publicou, porém está suficientemente bem escrito para evidenciar seu apurado senso crítico, seu estilo leve e transparente, sua posição em face do "gaúcho a pé", personificado na figura de Chiru, herói de Sem Rumo, e ainda sua perspicaz captação psicológica de personagens como Izidro. Também na esfera científica a produção de Mário Martins não foi muito extensa, porém marcante, através de seus trabalhos psicanalíticos sobre Epilepsia, Feminilidade, Mania e Luxo. Sua grande obra, entretanto, consistiu no labor difícil de analista didata, exercido durante trinta anos, quer como analista de seus candidatos, quer como supervisor e diretor de seminários. Este artigo deixa entrever aspectos de sua personalidade que muito poucos de seus colegas psicanalistas conheceram, tais como seu sentimento poético diante da vida, sua cultura literária e sua visão abrangente de dramas individuais e coletivos como os de Izidro e Chiru.
Nesta edição de Enquanto as águas correm, procurei atender a alguns dos reparos críticos que me faz no seu artigo, por julgá-los procedentes. (In:Enquanto as águas correm. Porto Alegre, Movimento, 1981 - 2ªed.) ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- Links Relacionados: |