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Sobre Enquanto as Águas Correm *  E-mail
Fortuna Crítica - Artigos

Enquanto as águas correm

 

Mário Alvarez **

 

Tendo-se em conta o sentido do último livro de Cyro Martins, publicado há dois anos, era de prever que o autor abandonaria o gênero regionalista, como o fez agora em seu recente romance.


Foi, porém, no regionalismo rio-grandense, e filiado às suas boas fontes, que se inciou, em 1934, com Campo fora, livro de contos, entre os quais destacamos aquele "Tesouros" como amostra de um regionalismo bem compreendido, que não é feito à custa de uma linguagem dialetal a descrever cenas e costumes pitorescos.

 

Sem rumo o livro seguinte, publicado há dois anos, era já uma novela, mas ainda regionalista. Em algumas de suas páginas, seria preferível que houvesse mais parcimônia no emprego do colorido vocabulário rio-grandense. Mas isso não podia obscurecer o valor da novela como realização literária e como contribuição ao estudo de um tipo brasileiro, qualidades com as quais se projeta para além do âmbito regionalista, como bem acentuou Manuel Bandeira em um pequeno e vivo estudo crítico.

 

Retrata-se no livro o drama doloroso que vem vivendo o homem que povoa a nossa campanha, drama que era chocante naquele período de florido caudilhismo - 1936. Um livro corajoso, verdadeiro, sentido, e que não teve no Rio Grande, ao que nos parece, a repercussão merecida, em vista do interesse que apresentam para nós os problemas focados.

 

Houve, e tem havido, mais preocupação com os meninos de engenho, com a vida dos molequezinhos da Bahia, do que com a vida de Chiru, personagem de Sem Rumo, sobre o qual se desencadeiam as forças que vêm alterando de um modo lento e definitivo o meio social do homem dos campos rio-grandenses.

 

Guri de galpão, judiado e surrado por muitos, criado um pouco por todos - pelos velhos patrões decadentes, pela figura sombria e temida do capataz, Chiru vive sem amor e sem amparo, cresce sem o cultivo de aptidões para o trabalho e sem instrução, a não ser os rudimentos de letras ensinadas à palmatória por um professor rural, bronco e bêbado.

 

Sente-se no guri a força virgem e o ímpeto lutador da raça, a viver potencialmente ao lado da felicidade descuidada do ser infantil que se integra, por laços mágicos, ao seu ambiente e ao seu destino.

 

As aquarelas de cores límpidas e ingênuas, traçadas com ternura e poesia pelo escritor, vão-se ensombrecendo. Cresce o guri, surge a rebeldia, logo vencida, em face da realidade hostil e centraliza-se então em sua pessoa o drama da desadaptação do gaúcho, vítima da desorganização do trabalho rural promovida pelo progresso e pela ação de fatores econômicos, e vítima do desamparo espiritual e material em que foi conservado pelos dirigentes políticos. Estes o prejudicaram ainda, perturbando seu espontâneo esforço de adaptação e desviando-o do trabalho para as lutas políticas e caudilhescas.

 

Valentias bravateiras, capanguismo, criminalidade regada a álcool, paixões partidárias tintas de sangue, tragicomédias eleitorais - eis o fundo de cena que aparecia, às vezes em heróica estatuária, o "centauro dos pampas", como ardilosamente o chamavam.


O livro em que se focava assim o ocaso das figuras gaúchas não teve, porém, no Rio Grande, como dissemos, a repercussão esperada.

 

O atribulado ambiente rio-grandense daquela época ilustrava, no entanto, ao vivo, as páginas da novela.

Mas passemos, depois desta breve visão sobre a obra anterior de Cyro Martins, ao seu último livro - Enquanto as águas correm.[1939]

 

Conserva o autor as raízes que o prendem ao seu meio, mas a realização literária nada tem que ver com o regionalismo.

O estilo se enriquece de uma limpidez e de uma pureza de tons que não se está habituado a encontrar na moderna literatura nacional, revelando cuidado de fatura, ausência de artifícios, exata adaptação aos temas. E por toda parte, no livro, anda esparsa uma viva e fragrante poesia.

 

Decorre a ação do romance no ambiente de uma cidadezinha, em torno da vida de seres humildes que em seus subúrbios se acolheram, arrastados, como Chiru, do meio rural para o citadino. A cidadezinha, o seu mundo social, o rio claro e lento, às vezes crescido no ímpeto das enchentes, sobressaem em excelentes descrições e disputam em certas páginas o lugar das figuras humanas.

 

Esse relevo, que tomam o meio físico e o meio social, constitui um aspecto interessante do livro, mas não se faz sem determinar prejuízos. Porque às vezes permanecem demasiado nos "cortes" e se estendem pelos capítulos, cenas e episódios que ganham excessiva vida própria, tendo com o tema central - que é figura de Izidro - somente uma relação de contigüidade (as páginas da enchente, os episódios médicos, as recordações do Dr. Ladislau). No tronco da narração enxertam-se e brilham como parasitas, desviando o interesse do leitor e causando um roubo à força total do romance.


O fundo social que predomina em Sem Rumo aparece ainda aqui, mas de uma maneira circunstancial. A população da "aldeia", a gente do "povinho", formada pelos que abandonaram os campos, move-se numa tragédia sem heroísmos, numa vida apagada e sem sonhos. E no inverno saem dos ranchos figuras enlutadas, pois a muitos "o frio e a fome ajudaram a partir".


É na "aldeia" que vai viver Izidro, e sua existência parece confundir-se com as que povoam aqueles ranchos pobres: confundir-se com a música do rio, cujas águas ressoam em surdina nas páginas do livro. Mas, no fundo, Izidro se alteia como um cipreste isolado. E nas noites silentes em que sob os tetos humildes se desenrolam os pequenos dramas da vida coletiva, tão sugestivamente descritos, apenas a sua alma vela no abandono e na ânsia de sentir a agitação da vida. Somente ele sonha, e o seu espírito sobrepaira à mesquinhez geral e se estende para o mundo...

 

Na psicologia do personagem central é que se concentra o maior interesse do romance. Ela é feita em tons velados, em linhas que devem ser compostas pouco a pouco na compreensão do leitor. Somente assim vem a ser iluminada a sombra estranha que criou o romancista.

 

Izidro chega a um recanto da fronteira do Rio Grande (e com sua chegada se inicia a narração) como uma vida acabada, um homem esgotado por uma existência errante e aventureira. Na verdade, era uma alma inquieta e insatisfeita, que em vão se procurara, e que a força dos acontecimentos (sabemos depois que vinha expulso como extremista) impelia abruptamente para o seu destino.

 

Ele se vê sozinho, a caminhar sem rumo sob a luz desconhecida de um fundo crepúsculo dos pampas que se abria, cheio de revelação, como um "painel" de "silêncio".

E aí começamos a perceber (porque tudo é apenas sugerido tanto ao leitor como à consciência do próprio personagem) porque sua alma "renasce" e abandona a tumultuária existência anterior, inclinando-se para os seus profundos desígnios. Sem crenças, sem fé, sem ideal, Izidro iniciará, não obstante, a partir daquele dia, uma existência de renúncia e isolamento, perdão para a vida, ternura e compreensão para os humildes. Apenas o guiam os impulsos secretos que haviam disputado (e continuarão disputando) a direção da sua personalidade.


Esses traços essenciais são apenas entrevistos à medida que vamos avançando no romance. O próprio personagem, como dissemos, não toma consciência da sua situação. Nunca se lhe revela a verdade e o sentido da sua vida. Ele continuará a julgar-se a si mesmo egoísta e frio, apartado dos homens pelo duro coração sem piedade, e planejará voltar um dia ao mundo agitado em que vivera antes, na completa inconsciência do que era a certeza de sua alma.


Essa inconsciência, essa incompreensão íntima em um ser de pensamentos claros, habituado à introspecção, constitui o sopro maior de sofrimento que agita o personagem, é o clima da sua desgraça, e é talvez o que lhe dá sua contida força dramática.


E quando, pelo fim do livro, o vemos miserável e velho, já próximo da morte, sentimos crescer ainda mais o desamparo que enche seu coração de um estranho sofrimento sem angústias nem revoltas.

 

Nesse fino jogo, em que se traduz afinal a inconsciência da conduta humana, vai-se tecendo a alma do personagem e com tanta autonomia, que o crítico se pergunta se o autor não será guiado apenas pelo dom da criação artística, ignorando ele próprio o que se passa misteriosamente na vida que criou.


Em Izidro, afora os traços que pusemos em destaque, devemos apontar outros, importantes porém mais à superfície, e que por isso mesmo o ligam mais diretamente ao mundo.

 

Descreve-se no capítulo segundo do romance a pitoresca cena em que se apresenta na venda de Pacheco, anunciando-se, de improviso, como ferreiro em busca de trabalho. E logo a seguir o delicioso diálogo com Carlos, estudante cheio de poesia e do romantismo da adolescência, diálogo no qual Izidro solta a imaginação para brincar com o rapaz como um gato bondoso com um simpático ratinho.


Percebemos aí o sentido do "humour" que o anima, a contida irreverência, feita de ironia, cepticismo e superioridade, e que contrabalança a sua tendência quase mórbida de desligar-se subitamente da realidade para se mover num mundo interior povoado de sonhos. E por vezes tocaria ao delírio, não fosse a precisão e a rapidez com que intervém a sua irônica autocrítica, repondo-o de novo sobre a realidade que se apresenta, então, mais nua e dolorosa. ("O sonhador sou eu, caiu em si Izidro, reparando melhor na atitude do observador" - um pobre chacareiro que guiava com alheamento a sua carreta cheia de frutas; e mais adiante, à mesma página 34: "Estava no alto da coxilha. Tinha cruzado por todas as carretas que subiam vagarosas a encosta. Aquele era o seu exército. - Não é. Pára-te, cabeça maluca, por onde andavas?").

 

"Humour" e sonho, ironia e compensação da realidade são, juntamente com a inconfessada atitude de renúncia, os fatores de que ressalta a capacidade de adaptação do personagem, adaptação que pode se afigurar ilógica, e dependente de um capricho do escritor, a um leitor apressado. Porque ele está no seu mundo em toda parte e em qualquer lugar, orientando-se em todos os sentidos. De um homem errante entregue ao rumo do acaso, no início, integra-se a seguir na vida da aldeia, trabalha a terra com amor, convive com os humildes, para os quais se sente impelido por um vago idealismo messiânico, mas dos quais guarda distância, sempre fiel ao drama profundo do seu ser que não lhe permite achar um sentido nem para sua própria vida ("O que fazer daquela gente que se entregava à sua direção? Era preciso guiá-la. Mas para onde?").


Despojado de ambições - ambições de riqueza (sente-se que trabalha apenas para o seu sustento e há na sua atividade de agricultor um fundo de lição aos Chirus que ao seu lado parasitam a terra que ocupam), despojado de ambições de riqueza, de amor, de cultura, de ação - sua vida vai sendo moldada, em sua exterioridade, pelas ocorrências ambientes.

 

Uma luta contra os gafanhotos, que devastavam as plantações, o atira aniquilado a um leito de hospital, de onde sai a custo para viver em seguida como mendigo, graças à esmola ocasional de um homem que havia ganho uma pequena fortuna e deixa cair em seu chapéu a primeira moeda.

 

Passa a viver, depois, da caridade de uma prostituta e em companhia de um cão, abandonado e sozinho como ele. É amado por ambos e lhes empresta um pouco de sua alma.


Está no fim da vida - velho, doente, magro e anguloso, vestido dos farrapos de mendigo - mas a decadência é apenas exterior, porque vai cessando a luta de sua alma contra a força que ele mesmo levantava, e assim ela brilha purificada.


Numa noite de frio, ei-lo que sai de seu casebre para empreender ainda uma caminhada pelo mundo. Avança para o rio agitado, como em procura da morte. Mas a cidadezinha o atrai com suas velhas ruas povoadas da vida de sortilégio que vem da sombra móvel dos plátanos.

 

E a narrativa entra assim em um ambiente de irrealidade e assombração.


Por uma fresta de janela entreaberta escoa-se uma luz esquecida, luz mortiça alumiando um recanto de sonho - lá dentro move-se, em passos lentos e cautelosos, uma figura de contos de fada, a dialogar com um gato escuro e sonolento... "Dona Conceição vivia só. Levantava, corcunda, com o chale ao ombro e o bastãozinho na mão, perscrutando desconfiada os cantos, embaixo dos móveis, as janelas... Sentava-se depois perto do fogareiro para fazer o fogo, conversando sem cessar com o gato. "- Carvão grande, este, Veludo. Vamos botar bastante carvão, que está frio..."


Depois tirou da cintura um molhe de chaves, "examinando minuciosamente uma por uma". E num ritual de encantamento põe-se a abrir gavetas, novas gavetas cada vez menores, ocultas nas outras.


" Izidro percebeu quando ela disse: ainda está aqui, o bauzinho, ainda está aqui, Veludo". E dele foram saindo, uma por uma, velhas notas recolhidas, todo um tesouro inútil e morto.

 

- "Este é o Imperador".

 

- "Este é o marechal Deodoro".

 

Enquanto as águas correm... Que significará este título? Parece sentir-se nele o velho símbolo universal que compara a vida humana à corrente de um rio...


Vemos, na última página do livro, Izidro na postura de um criminoso e quase impelido a realizar um ato que representaria o desmoronar de toda a sua alma.

 

" Ouvido à espreita, numa atitude equívoca, ele esperou inutilmente que a suspeita da aproximação de alguém se confirmasse. A princípio se amedrontou, mas logo sorriu com amargura, refletindo sobre o instante. Estaria, acaso, em situação de recear o que quer que fosse? Mas, pensava, tomara que venha alguém! Entretanto as suas mãos teimavam, empurrando a janela que cedia lentamente. E quando as folhas se abriram, batendo de leve na parede e produzindo um baquezinho abafado, ele aguardou ainda qualquer movimento da velha. Tossiu. A cabeça pesava. Ouvia o ressoar abafado e distante das águas correndo. Uma irradiação de dia próximo ampliava as ruas. As casas e as árvores pareciam mover-se. Conservava uma confusa noção de que era preciso andar, andar sem descanso. Deixou a janela".

 

" Ouvia o ressoar abafado e distante"... O ressoar das águas do rio crescido, que rolava lá embaixo, junto à cidadezinha, agitado e violento... Mas ouvia também, talvez, a música das outras águas - as do símbolo - as da vida infinita correndo sem cessar.

 

Porque sentia crescer uma lucidez dolorosa: "todos os vãos da vida se aclaravam, e urgia repelir as memórias, as sugestões afluindo de recantos ignorados do ser. Que nada o importunasse, que aquele momento se prolongasse indefinidamente"...

 

Assim termina o livro. Em nossa imaginação, vemos Izidro afastar-se nas ruas da cidadezinha já iluminada pelo dia. Ele vai, também, iluminado. Quem sabe, naquela hora de revelação, pôde, enfim, conhecer os seus segredos...

 

* Artigo publicado no "Jornal do Estado". Porto Alegre, 8 de setembro de 1939,
o qual  passa a constar da 2a. ed. de Enquanto as águas correm, 1981.

 


* * Nota de Cyro Martins sobre Mário Alvarez Martins

 

Mário Alvarez é quase um pseudônimo de Mário Alvarez Martins, pois todos o conheciam somente por Mário Martins, eminente psicanalista, fundador da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre, recentemente falecido. Este é o único artigo literário que Mário escreveu e publicou, porém está suficientemente bem escrito para evidenciar seu apurado senso crítico, seu estilo leve e transparente, sua posição em face do "gaúcho a pé", personificado na figura de Chiru, herói de Sem Rumo, e ainda sua perspicaz captação psicológica de personagens como Izidro. Também na esfera científica a produção de Mário Martins não foi muito extensa, porém marcante, através de seus trabalhos psicanalíticos sobre Epilepsia, Feminilidade, Mania e Luxo. Sua grande obra, entretanto, consistiu no labor difícil de analista didata, exercido durante trinta anos, quer como analista de seus candidatos, quer como supervisor e diretor de seminários. Este artigo deixa entrever aspectos de sua personalidade que muito poucos de seus colegas psicanalistas conheceram, tais como seu sentimento poético diante da vida, sua cultura literária e sua visão abrangente de dramas individuais e coletivos como os de Izidro e Chiru.

 

Nesta edição de Enquanto as águas correm, procurei atender a alguns dos reparos críticos que me faz no seu artigo, por julgá-los procedentes.

(In:Enquanto as águas correm. Porto Alegre, Movimento, 1981 - 2ªed.)

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Links Relacionados:
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- Antecedentes do gaúcho a pé