Sobre "A Dama do Saladeiro" | | Imprimir | |
Moacyr Scliar - Escritor Talvez por causa da excessiva modéstia ("Não me sinto tão importante", escreveu, em 1980, no prefácio deste mesmo A Dama do Saladeiro) Cyro Martins não nos deixou um livro de memórias. O que é uma lástima. Não apenas era ele grande médico, grande escritor, e grande ser humano, como também as vivências pelas quais passou foram transcendentes - inclusive do ponto de vista histórico. Seu testemunho seria assim importante, inclusive para a recuperação do passado rio?grandense - e certamente seria uma lição de vida. Esta lacuna, contudo, foi preenchida em parte pelo próprio Cyro quando resolveu oferecer "à nossa gente" aquilo que chamou de "fraterna entrega de recuerdos", relatos redigidos (ao menos em sua forma final) em fevereiro de 1980. Psicanalista engajado em seu trabalho, ele só conseguia escrever no "rabo das horas", como dizia, ou então nas clássicas férias psicanalíticas, em fevereiro, quando, refugiado no apartamento na praia de Atlântida, no litoral gaúcho, colocava em dia a sua literatura. Estes recuerdos, e não por acaso, se referem a um período importante da vida de Cyro: os três últimos anos da Faculdade de Medicina e os três primeiros anos de formado. Têm, portanto, a assinatura do dr. Cyro Martins, médico. Mas não se engane o leitor. Não estamos diante daquelas histórias de doutor, tão comuns nas séries televisivas. A Dama do Saladeiro é muito mais do que isto. É "um corte de vida", para usar de novo a expressão do próprio Cyro. Da vida na sua dimensão mais ampla, histórica, social, cultural. Já nos textos iniciais faz-nos o autor um retrato verdadeiramente precioso do Rio Grande do Sul nos anos trinta, os anos que mudaram o rumo do país, e que ele acompanhou como estudante pobre, morador de "pensões de terceira", mas profundamente comprometido com a realidade do Estado e do país. Depois disto temos a experiência do doutorzinho recém?formado na pobre e pequena Quaraí, fazendo a "clínica dos três pês": parentes, pobres, putas. Era uma medicina precária, carente dos recursos da capital; precária, mas rica de ensinamentos. Certo, depois ele mudou sua trajetória; mas estou seguro de que no Cyro Martins, psicanalista, estava também o Cyro Martins médico de campanha. Neste sentido, posso dar um depoimento pessoal: além de leitor e amigo fui também paciente do doutor Cyro - aliás, todos o chamavam assim, doutor Cyro. Este "doutor" não era usado em sinal de deferência, de homenagem, como é o caso neste país de abissais desigualdades; não, tratava-se de um tratamento respeitoso, sim, mas afetuoso. Porque este era o principal característico de Cyro no exercício da profissão: ele era afetuoso, ele era empático. Escutava em silêncio, mas era um silêncio diferente do convencional silêncio analítico, que não raro angustia o paciente, e que parece se destinar precisamente a isso, a angustiá-lo, assim rompendo, não sem violência, suas defesas. O silêncio do doutor Cyro era terapêutico, mas era um cálido, receptivo silêncio. O mesmo se podia dizer de sua expressão facial: neutra, como se esperaria de um psicanalista, mas de novo não era uma máscara pétrea; era possível perceber em seu rosto um fugidio, e por isso mesmo encorajador sorriso. Os membros do grupo (tratava-se de uma grupoterapia) se sentiam ali confiantes. Recordo-me de que uma vez, voltando de São Paulo de carro, eu voava pelas estradas, na ânsia de chegar a tempo à sessão (naquela época ainda não havia o Código Nacional de Trânsito). Enfim, o doutor Cyro era um terapeuta movido por um enorme desejo de ajudar os outros. Mas não deveria ser este o característico maior de todos os terapeutas? Possivelmente. Mas é um característico que se perdeu com a progressiva especialização da profissão, com a hipertrofia do componente tecnológico que relegou para um segundo plano o fator humano. Não por outra razão, aliás, Cyro estudou, em numerosos ensaios, a dimensão humanística da medicina e da própria psicanálise, numa época vista como uma técnica fria, a ser aplicada com distanciamento, num clima quase asséptico. Como Freud, Cyro concebia a psicanálise como algo mais amplo, um processo de autoconhecimento pelo qual o paciente melhora como ser humano. O que, aliás, é também o objetivo não explícito da grande literatura. Falando em literatura: o Cyro Martins escritor está, sim, em A Dama do Saladeiro. De novo, temos aqui uma marca registrada. Cyro pertence à estirpe dos escritores gaúchos que, como Simões Lopes Neto ou Érico Veríssimo, são grande contadores de histórias. Não faltam neste volume relatos que, pitorescos ou dramáticos, tocam profundamente o leitor. É o caso da narrativa do doutor Robertinho, em "Entre médicos". O perturbador desfecho deste relato de uma vingança fala muito do clima emocional de nossa região da América Latina. E fala também da arte de Cyro Martins, médico e escritor. Uma arte que aqui ressurge em toda a sua pujança. Para alegria e emoção de todos os seus leitores. Porto Alegre, julho de 2000. Links Relacionados: |