Sobre "A Dama do Saladeiro" | | Imprimir | |
Moacyr Scliar - Escritor
Estes recuerdos, e não por acaso, se referem a um período importante da vida de Cyro: os três últimos anos da Faculdade de Medicina e os três primeiros anos de formado. Têm, portanto, a assinatura do dr. Cyro Martins, médico. Mas não se engane o leitor. Não estamos diante daquelas histórias de doutor, tão comuns nas séries televisivas. A Dama do Saladeiro é muito mais do que isto. É "um corte de vida", para usar de novo a expressão do próprio Cyro. Da vida na sua dimensão mais ampla, histórica, social, cultural. Já nos textos iniciais faz-nos o autor um retrato verdadeiramente precioso do Rio Grande do Sul nos anos trinta, os anos que mudaram o rumo do país, e que ele acompanhou como estudante pobre, morador de "pensões de terceira", mas profundamente comprometido com a realidade do Estado e do país. Depois disto temos a experiência do doutorzinho recém?formado na pobre e pequena Quaraí, fazendo a "clínica dos três pês": parentes, pobres, putas. Era uma medicina precária, carente dos recursos da capital; precária, mas rica de ensinamentos. Certo, depois ele mudou sua trajetória; mas estou seguro de que no Cyro Martins, psicanalista, estava também o Cyro Martins médico de campanha. Neste sentido, posso dar um depoimento pessoal: além de leitor e amigo fui também paciente do doutor Cyro - aliás, todos o chamavam assim, doutor Cyro. Este "doutor" não era usado em sinal de deferência, de homenagem, como é o caso neste país de abissais desigualdades; não, tratava-se de um tratamento respeitoso, sim, mas afetuoso. Porque este era o principal característico de Cyro no exercício da profissão: ele era afetuoso, ele era empático. Escutava em silêncio, mas era um silêncio diferente do convencional silêncio analítico, que não raro angustia o paciente, e que parece se destinar precisamente a isso, a angustiá-lo, assim rompendo, não sem violência, suas defesas. O silêncio do doutor Cyro era terapêutico, mas era um cálido, receptivo silêncio. O mesmo se podia dizer de sua expressão facial: neutra, como se esperaria de um psicanalista, mas de novo não era uma máscara pétrea; era possível perceber em seu rosto um fugidio, e por isso mesmo encorajador sorriso. Os membros do grupo (tratava-se de uma grupoterapia) se sentiam ali confiantes. Recordo-me de que uma vez, voltando de São Paulo de carro, eu voava pelas estradas, na ânsia de chegar a tempo à sessão (naquela época ainda não havia o Código Nacional de Trânsito). Enfim, o doutor Cyro era um terapeuta movido por um enorme desejo de ajudar os outros. Mas não deveria ser este o característico maior de todos os terapeutas? Possivelmente. Mas é um característico que se perdeu com a progressiva especialização da profissão, com a hipertrofia do componente tecnológico que relegou para um segundo plano o fator humano. Não por outra razão, aliás, Cyro estudou, em numerosos ensaios, a dimensão humanística da medicina e da própria psicanálise, numa época vista como uma técnica fria, a ser aplicada com distanciamento, num clima quase asséptico. Como Freud, Cyro concebia a psicanálise como algo mais amplo, um processo de autoconhecimento pelo qual o paciente melhora como ser humano. O que, aliás, é também o objetivo não explícito da grande literatura. Falando em literatura: o Cyro Martins escritor está, sim, em A Dama do Saladeiro. De novo, temos aqui uma marca registrada. Cyro pertence à estirpe dos escritores gaúchos que, como Simões Lopes Neto ou Érico Veríssimo, são grande contadores de histórias. Não faltam neste volume relatos que, pitorescos ou dramáticos, tocam profundamente o leitor. É o caso da narrativa do doutor Robertinho, em "Entre médicos". O perturbador desfecho deste relato de uma vingança fala muito do clima emocional de nossa região da América Latina. E fala também da arte de Cyro Martins, médico e escritor. Uma arte que aqui ressurge em toda a sua pujança. Para alegria e emoção de todos os seus leitores. Porto Alegre, julho de 2000. Links Relacionados: |