CYRO MARTINS LEITOR DE ALCIDES MAYA | | Imprimir | |
RONALDO MACHADO*
Cyro Martins foi um fiel e consistente leitor de Alcides Maya, a ele se vinculando afetiva e intelectualmente, ficando dessa relação profundas e importantes marcas, o que se revela explicitamente em seus ensaios críticos e de forma intertextual em sua obra ficcional. Em Cyro Martins, a própria lembrança do homem Alcides Maya se estampa com a mesma densidade plástica e profundidade psicológica que identifica na sua obra:
Esse imperativo de saudade e a deleitação de fundo nostálgico 2, já antes identificado por Augusto Meyer na obra de Alcides Maya, que figura o espaço da campanha sulina pela retórica grandiloqüente das suas páginas barrocas, desdobra-se para além das margens da sua trilogia regionalista - Ruínas Vivas, Tapera, Alma Bárbara - e comparece de modo seminal na prosa de martiniana. Destacando o poder evocativo que a exuberância poética de Maya lhe suscita, Cyro Martins recortará e transfigurará justamente o cerne desta obra - a poética da saudade:
Assim, a ênfase que Cyro Martins confere aos vínculos presentes na obra de Maya entre evocação e poesia, entre as sombras do passado e o colorido visionário da ficção, será o ponto exato da confluência das duas obras. É o que se apresenta em Apenas uma tapera, crônica pela qual relata sua visita, depois de 41 anos de ausência, ao Cerro do Marco, local onde viveu sua infância e adolescência. Nesta crônica, publicada em 1976, a referência a Alcides Maya se apresenta desde o título e logo no primeiro parágrafo:
Na ausência da tapera real esperada, a memória figura o espaço, o lugar da nossa antiga morada, a partir das imagens poéticas colhidas da leitura de Alcides Maya. A insuficiência dos restos materiais da casa primeva é suprida pela imagem da tapera em ruínas, figurada no ermo da imensidão nua e deserta, no espaço da solidão árida, a partir do intertexto de Alcides Maya:
Do clima de reminiscências que identifica na obra de Alcides Maya, dos painéis que geram efeitos nostálgicos, o constante retorno dos quadros de retirada, os derivados da saudade 6, Cyro Martins transfigurará a saudade em indagação existencial e concomitante reflexão sobre a condição humana.
Essa transfiguração da saudade, de estática nostalgia em recherche existencial, se consubstancia pela ressimbolização do espaço da campanha sulina, que de estampas enrijecidas se tornam imagens vivas que aprofundam lembranças vividas, deslocam recordações vividas, para se tornarem lembranças da imaginação. 8 Assim, a presença de Alcides Maya na obra de Cyro Martins se dá pela transfiguração da saudade que, trabalhando a figuração do espaço pela memória, assume o caráter de um itinerário ao fundo do homem que somos, aos desvãos dos recantos infantis . Como já destaquei em um artigo anterior (É preciso reler Cyro Martins!), essa perspectiva dará a característica fundamental da sua obra: a íntima junção entre memória, regionalismo e psicanálise, que leva ao compromisso firmado entre o artista e seu meio, o homem e sua história, entre o indivíduo e a sociedade. Assim, Cyro Martins teceu sua obra valendo-se não só de suas experiências de vida, mas também estabelecendo um diálogo intertextual com a ficção dos primeiros regionalistas. Isto é, escreveu não só a partir de um universo de referências históricas e culturais que têm origem na sua experiência da campanha, como criança, ou depois como médico, mas também na leitura da tradição regionalista rio-grandense, com especial destaque para Alcides Maya. *Ronaldo Machado NOTAS 2) MEYER, Augusto. Alcides Maya. In: MEYER, Augusto. Prosa dos Pagos (1941-1959). Rio de Janeiro: Livraria São José, 1960, p. 117 3) MARTINS, Cyro. Alcides Maya. Op. cit., p. 66 4) MARTINS, Cyro. Apenas um Tapera. In: MARTINS, Cyro. Rodeios: estampas e perfis. Porto Alegre: Movimento, 1976, p. 18 5) MAYA, Alcides. "Tapera". In: MAYA, Alcides. Tapera (cenários gaúchos). 2.ed. Rio de Janeiro: Briguiet & Cia., 1962, p. 35-37 6) MARTINS, Cyro. Alcides Maya. Op. cit., p. 61 7) MARTINS, Cyro. Apenas um Tapera. Op. cit., p. 22-23 8) MARTINS, Cyro. Apenas um Tapera. Op. cit., p. 30 |