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A relação médico - paciente - Cyro Martins  E-mail
Estante do Autor - Ensaios

 

Com o advento da psicanálise, a consulta médica adquiriu uma nova dimensão, porque a pessoa do consulente passou a ter uma importância muito maior do que o quadro sintomático.

Os médicos organicistas irredutíveis criticaram esse novo enfoque da patologia, pois nutriam um rechaço tradicional por tudo que dissesse respeito à subjetividade. Mas à medida que a medicina foi se capacitando de que só o estudo clínico objetivo não fornecia uma visão total da doença e do doente, percebeu o quanto estava sujeita a erros.

O médico é sobretudo um observador. Portanto, mais do que um espectador. Aplica atentamente os sentidos, o olhar, o ouvido, o olfato e o tato, a partir das queixas, da conduta e da história do paciente. A constatação direta de dados nem sempre basta para a resolução do caso. Por isso, o segundo passo é a investigação complementar.

As possibilidades de engano são múltiplas e esta é uma característica de toda a medicina. A prova desta afirmação está no fato de, na clínica geral, o médico precisar manter-se atento para os possíveis desvios diagnósticos produzidos pela "dor referida", assim como nas neuroses o psicoterapeuta precisa manter-se alerta para as "angústias referidas", pois nem sempre os fatores que o paciente aponta correspondem às verdadeiras causas da sua ansiedade. É comum que esteja em jogo o mecanismo de defesa chamado "deslocamento". A experiência e o estudo nos ensinaram que, na patologia humana, os instintos estão sempre atuantes e podem afetar a noção de realidade da pessoa. Aliás, não é só na patologia, mas em todas as manifestações de vida. Não podemos enveredar por esse caminho agora.

Os senhores poderão me dizer: sim, concordamos que tudo isso seja verdadeiro e ao mesmo tempo retrucamos que há muito, de há séculos talvez, a medicina tem conhecimento desses fatos.

Responderei: sim, porém sob a forma de conhecimento intuitivo e não científico.

Esses impulsos necessitam de uma válvula de escape, que pode ser qualquer órgão. A descarga se acompanha de uma sensação prazenteira, que Freud denominou libidinosa, como sinônimo de erótica ou sexual. A característica essencial da libido é a tendência a unir os indivíduos, num nível de realidade, por isso estreita nossa relação com o mundo exterior. Daí a sua força criadora, produtiva. As raízes biológicas da libido são também eróticas, porém num sentido puramente hedonista. São energias que atuam de forma automática, regendo-se pelo principio do prazer.

Dentro de um plano genérico, as manifestações instintivas se assemelham em todos os indivíduos. Porém, quando estudamos os detalhes de suas combinações em cada um, em particular, verifica-se que não existem duas pessoas iguais. Cada tendência instintiva adquire forma singular de manifestações nos seres humanos. É isso que imprime o tom, a maneira de ser de cada um de nós, o modo de enfrentar as situações da vida. A esse estilo de conduta chamamos personalidade.

Todas essas considerações se baseiam numa visão da medicina "como um conceito de totalidade", conforme o pensamento do nosso mestre Angel Garma, influindo na práxis médica dos nossos dias. Isso indica que só esmiuçar a pesquisa do sofrimento orgânico não basta. O paciente precisa ser avaliado em termos globais, o que vale dizer, em termos de respeito à sua personalidade.

Incontestavelmente, o ponto central deste nosso tema hoje é a consulta médica, sobretudo a primeira entrevista. Resumirei o que já tenho pensado e escrito sobre a matéria, aparentemente chã, porém de suma importância para todo o desenrolar do tratamento. É um momento de expectativa, que o consulente quase sempre vive com intensa ansiedade, embora muitas vezes consiga dissimular seu estado afetivo. Quem de nós já não consultou alguma vez? Há no indivíduo uma tendência inata a esperar o pior. Mas deixarei esta afirmação no ar, para não me desviar do caminho objetivo que me tracei.

Na consulta, em especial na primeira, se já é indispensável permitir e estimular o paciente para que fale sem constrangimento, mais relevante ainda será não lhe dar a impressão de que desejamos que ele ande depressa. Como o tempo de duração da consulta deve ser preestabelecido, com o conhecimento do paciente, bem entendido, outras entrevistas serão necessárias em muitos casos. Nos casos difíceis ou tormentosos, o clínico precisa cuidar-se da pressa de receitar em seguida, como o psicanalista, de interpretar logo. Com essa conduta, o que pretendem, um e outro, é abrandar a própria ansiedade.

À medida que o médico adquire maior desenvoltura no lidar com o paciente, irá progressivamente praticando exames menos sistemáticos, de acordo com os pontos referenciais teóricos que lhe foram ensinados, deixando que o seu faro clínico siga a ansiedade do paciente, que a guiará ao nódulo de urgência, correspondente ao ponto de urgência de cada sessão psicanalítica.

Isto é de tal relevância que, se, numa primeira consulta, não se der ao doente oportunidade para que desabafe em torno da situação que o angustia, corre-se a risco de perder o cliente. Devemos partir da convicção de que todo indivíduo tem problemas pessoais o sobre eles anseia abrir-se com alguém, e esse alguém deverá ser, logicamente, o médico que escolheu. Por isso, a consulta é a grande oportunidade esperada, às vezes desde muito tempo. Quanto a mim, na minha prática psicanalítica, ao contrário do que costuma fazer a maioria dos colegas, se não capto uma motivação inconsciente geradora das queixas do paciente, não cometo a leviandade de dizer que ele não precisa de análise e lhe sugiro que faça pelo menos uma meia dúzia de entrevistas.

Como ficou subentendido, essas ponderações valem para qualquer tipo de história clínica. Como regra geral, devemos sempre começar a entrevista pela situação atual - e notem que digo situação, e não simplesmente sintomatologia - para, num segundo tempo, nos internarmos no passado. Com essa técnica, evitamos que o paciente se desinteresse da consulta e se recolha, dificultando o nosso trabalho.

Sem esse mínimo de base psicológica, com a qual possamos jogar racionalmente, a práxis médica, por mais sofisticados que sejam os aparelhos do cenário médico, e quiçá por isso mesmo, tenderá a regredir ao estágio do ritual mágico. Depende portanto, essencialmente, da objetividade da nossa conduta, a atenuação do fascínio pelos exames complementares, que seduzem o paciente. Dessa forma, o médico o leva a assumir a parte de responsabilidade que lhe cabe na cura da sua enfermidade. Em psicanálise acontece algo parecido. O paciente, muitas vezes, mostra-se eufórico nos primeiros dias, convicto de que, de agora em diante, a sua vida vai melhorar, porque ele contratou um sujeito para resolver os seus problemas. Sua grande desilusão chegará no instante em que verificar que a solução de seus problemas vai depender dos seus esforços, da sua coragem e das suas renúncias.

Com efeito, o paciente precisa sentir, desde o contato inicial, desde o telefonema marcando a primeira consulta, que estamos do lado da parte do seu ego que quer combater a doença, mas, ao mesmo tempo, é de boa técnica conservar certa distância afetiva, a fim de preservar a isenção necessária para o raciocínio crítico, guia seguro para o diagnóstico certo.

Quanto às falsidades sobre o seu caso, que o paciente nos transmite, consciente ou inconscientemente, podendo nos induzir a erros, convém salientar que a informação inverídica, comunicada conscientemente, é menos perturbadora que a falsidade inconsciente. Quero registrar que, assim como certos doentes distorcem os dados da anamnese pela omissão ou pela atenuação, há também, e não são raros, os que alteram as informações, exagerando as queixas. São os hipocondríacos. Mas só cabem nesta classificação os indivíduos que, embora delirantemente, estão convencidos do que afirmam. E por isso mesmo, pela força da convicção, são capazes de envolver o médico.

O hipocondríaco se diferencia do simulador pelo objetivo do seu rosário de queixas. O primeiro procura atrair a comiseração dos circunstantes ou do médico, sem se aperceber muito bem ou sem se aperceber de todo do sentido do seu procedimento, ao qual é inerente um fundo agressivo. Já o simulador visa tirar vantagem, deliberadamente, das queixas que faz.

Há ainda a considerar a fato de que quase todas as pessoas, quando vão à consulta, entram em regressão, mostrando-se com um nível de comportamento inferior ao seu habitual. É uma conduta neurótica, essa para a qual devemos estar atentos. A razão desse fenômeno consiste no fato de ser a consulta médica uma situação de exceção, na qual o indivíduo reativa velhos moldes do comportamento infantil e, conseqüentemente, o desejo de voltar a ser cuidado pelos outros, pelos grandes, em especial a mamãe e o papai. No caso, grande é o doutor. De resto, a doença, se acarreta contratempos, ocasiona também vantagens do procedimento passivo-receptivo. Isto quer dizer que a pessoa enferma sente-se de certo modo aliviada do compromisso da responsabilidade própria do adulto. Seu pensamento inconsciente ou às vezes semiconsciente, dependendo do grau da regressão, é este: " Eles (os familiares) que façam por mim". Mas ao entrar no consultório, "eles" transformam-se em "ele", o médico. Demais - pensa com uma certa dose de agressividade - ele está sendo pago para isso, com dinheiro do seu bolso ou do Instituto, para ocupar-se dele, paciente.

Essas considerações visam salientar que, para o paciente, mesmo sentindo-se doente de verdade, nem tudo é ruim na doença. Alguns privilégios lhe são concedidos pelo ambiente em que vive, tais como atenções e cuidados, de que é muitas vezes carente fora da condição de enfermo. Também logra que sua consciência moral lhe conceda uma atenção interna benevolente durante esse período, minorando o angustiante sentimento de culpa persecutória, pois a enfermidade já é, por si só, uma punição. Este é o benefício primário da doença. As atenções e as ajudas materiais, por amizade ou de direito, configuram o que se chama benefício secundário. E registremos ainda que entre as vantagens que a enfermidade acarreta se inclui a atenuação da responsabilidade pela própria saúde, o que expressa a regressão da personalidade a níveis infanto-juvenis. Com efeito, a saúde mental é uma conquista diária contra a tentação a regredir a estágios pregressos da evolução pessoal. Não esqueçamos, pois, em nenhum momento, que os fatos do passado moldam a conduta do presente. Os sintomas, as queixas, os fracassos, os êxitos, as preferências, os ideais, todos os componentes, enfim, da área da saúde, que emprestam sentido à história do indivíduo, emanam do seu currículo existencial e retratam o seu passado, o seu presente e deixam prever a sua perspectiva de futuro. Sobre alguns desses fenômenos convém às vezes questionar o paciente. Até mesmo a propósito das manifestações mais nitidamente orgânicas. Será útil investigar o que o paciente pretende com elas, dentro da concepção atual da medicina psicossomática, que é, afinal de contas, toda a medicina, pois, através desse prisma, consideramos o ser humano uma unidade biopsicossocial, impregnada de emoções. Por certo, o doente reagirá muitas vezes com perplexidade, porém essa reação será sempre melhor do que a indiferença. Com esse procedimento, poderemos levá-lo a colaborar mais ativamente conosco e a sentir-se, desde a primeira consulta, envolvido numa atmosfera de trabalho em comum. De tal forma, conseguiremos que aceite mais cordialmente a solicitação dos exames complementares e se mantenha numa expectativa simpática em relação ao tratamento.

Entre outras particularidades, deixadas de lado por economia de tempo, há uma sobre a qual não me permitirei calar. Refiro-me à conduta com os familiares, capítulo importante da relação médico-paciente. Penso que, com estes, o médico deve manter a mesma linha de objetividade que caracteriza a melhor norma profissional no trato com o paciente. E será bom adotar perante a família aquela mesma atitude de ceticismo benevolente com que ouvimos a história do consulente. A razão dessa atitude radica no fato de que freqüentemente os familiares têm diferenças a resolver com parente enfermo, podendo ter assumido, todos ou alguns, na ocasião da doença, uma reação defensiva contra seus próprios sentimentos de culpa, que se manifestam na ansiedade que a doença de uma pessoa desencadeia no meio familiar, ou ainda sob a forma de acusações que levantam, implícita ou explicitamente, contra um ou outro, por julgarem que procuraram recursos tarde demais.

Essas são condutas-clichês, aplicáveis a todos os tipos de pacientes e famílias. Porém não podemos esquecer que as especialidades se caracterizam pelos seus enfoques técnicos particulares. Entretanto, qualquer que seja a especialidade, se o médico está compenetrado da linha de pensamento que acabei de expor, que é essencialmente humanista, de respeito pela personalidade alheia, cada caso será visto com uma margem de criatividade, que escapa do rigorismo técnico e não cabe no atropelo do atendimento de massa, que não proporciona atmosfera de espontaneidade e intimidade que deve ter a consulta médica.

Com a aprendizagem e as vivências assistenciais adquirimos, paulatinamente, um sentido muito especial de responsabilidade profissional em relação aos pacientes. É o propósito terapêutico. Era esse propósito terapêutico que caracterizava a antigo médico de família, que existiu em todo o mundo e que ficou "enquadrado na moldura da história" da medicina. Não se trata de sentimentalismo aplicado ao exercício da medicina ou de uma piedade profissional assumida, com uma postura formal. A grande função de ordem psicológica dos hospitais de ensino consiste em proporcionar um ambiente específico para a estruturação da identidade médica, que resulta da preocupação com a verdade clínica mesclada com o interesse científico. Nesta época de superespecializações, esse ideal de formação médica é freqüentemente desprezado, pelos mestres e pelos alunos, como norma ultrapassada. Não obstante, é essa posição de ensino e aprendizagem que garante à medicina o seu lugar nas ciências humanísticas.

Mas sigamos adiante, antes que nos extraviemos em pormenores. O saber intuitivo - o clássico olho clínico - que não deixa de ter uma conotação poética, e os dados que os sentidos fornecem para o raciocínio vêm se desgastando à medida que se multiplicam os recursos tecnológicos, pois estes interferem na relação médico-paciente, a ponto de, nos países superdesenvolvidos, como o Japão, esse vínculo profissional ter deixado de existir. A interposição da aparelhagem entre médico e paciente leva à mais absoluta desumanização da medicina. Assim, os extremos se encontram, pondo em relevo o drama humano. De um lado a massificação da medicina dos povos subdesenvolvidos e, de outro, o requinte técnico dos ricos o poderosos.

Não há dúvida de que os sofisticados recursos tecnológicos adquiriram, em toda parte, dimensões de mito. Demais, comunicar-se sempre foi difícil aos homens, não somente no exercício da medicina, mas na arte de viver em geral. Daí a tendência a agarrar-se aos meios mecânicos, que nos dão a ilusão de podermos substituir o inigualável instrumento de intercâmbio que é a palavra.

Essas ligeiras considerações sobre tema tão sedutor nos servem para estabelecer uma ponte entre o problema da assistência médica diária, a das filas e a requintada, e o humanismo médico contemporâneo, violentamente contrastante com a mecanização a que me referi há instantes.

Mas em que consiste o humanismo médico contemporâneo? Consiste essencialmente no respeito que devemos à personalidade do paciente, seja ele previdenciário, conveniado, indigente ou particular e rico, adulto, adolescente ou criança. Essa consideração no trato já é, por si só, um remédio, o vínculo que singulariza o acontecer emocional entre a pessoa do paciente e a pessoa do médico. Esse é o remédio mais universal e mais eficiente. Se falhar, possivelmente todo o resto irá mal, principalmente se ponderarmos que todo o doente, não importa a natureza do seu mal, do corpo ou da alma, mais comumente psicossomática, quando chega na frente do médico se encontra num estado emocional regressivo. Basta atendê-lo como gente para robustecer-lhe o ego. Demais, com essa atitude, composta de tato e objetividade, nós o chamamos a brios, e para isso não usamos palavras. É algo próprio da linguagem pré-verbal, inerente, à simples presença do médico. Quando o medicamento médico, de que fala Balint, é oferecido sob a forma paternalista, o facultativo está prestando um desserviço ao seu consulente, pois contribui para que piore a sua condição como pessoa. Assim, sem que se estabeleça a atmosfera de espontaneidade e intimidade para uma boa conduta, mais distante ele fica da possibilidade interna de assumir a sua doença, o que retardará fatalmente a marcha do tratamento. Precisamos, pois, estar alerta com vistas a certas tendências à identificação com o paciente. A melhor conduta será tratá-lo como capaz de colaborar, desde a primeira consulta, para não viciar o estilo da nossa assistência. Essa conduta poderá parecer dura, mas na verdade é uma mensagem-estímulo à recuperação da saúde. Com as crianças, devemos nos apresentar sempre como o "doutor", e jamais como "o tio" ou "o vovô". Da mesma forma combato o vício das professoras, nos colégios, se fazerem chamar de "tia" pelos alunos do primeiro grau. Com essa maneira realista de tratar a criança doente ou estudante, nós, médicos e professores, estaremos ajudando a criança em mais de um sentido, sendo o principal deles o de animá-la a crescer.

A medicina de massa, que depende, entre outras causas, da explosão populacional e do subdesenvolvimento próprio dos povos do terceiro mundo, impõe às populações condições de dependência externa, a começar pelas muitas horas de espera, às vezes ao relento, que acentuam a tendência regressiva interna. Isso, evidentemente, dificulta o relacionamento com o médico, com a enfermagem, com toda a organização assistencial.

E agora, abordando estritamente o fenômeno psicológico fundamental da relação médico-paciente, direi que se trata do complexo emocional chamado transferência-contratransferência. Mas o que é transferir, no sentido da psicologia do inconsciente dinâmico? Transferir, em psicanálise, significa reviver uma situação ou muitas situações ou uma subestrutura emocional do passado para o presente, com a mesma intensidade afetiva de outrora, tendo em vista um objeto referencial definido, no caso, o médico, e mais especificamente o psicanalista. Se digo especificamente o psicanalista é porque a atmosfera de trabalho em psicanálise é essencialmente a transferencial-contratransferencial. No calor transferencial, alimentado pelo amor, pelo ódio ou pelo desprezo, o paciente extravasa, o mais das vezes indiretamente, sua carga afetiva obstruída pela repressão. Essa disponibilidade repetitiva é típica da criatura humana. Há em todos nós um anseio constante de expansão. Não somente na relação analista-paciente, que é uma situação sui generis, mas também na práxis médica em geral, e na convivência cotidiana as criaturas humanas repetem, de maneiras disfarçadas, inconscientemente, ora os anseios de amor e de carinho, no jogo do dar e receber, que se originam de Eros, personificação mítica da energia vital e dos instintos libidinosos, ou então reproduzem, isolada ou concomitantemente com os impulsos eróticos, os sentimentos que provêm de Tánatos, a divindade grega que simboliza o instinto de morte, mola-mestra da hétero e da auto-agressão.

No decorrer da análise, diferentemente do que se dá a entender através de divulgações mal feitas, a paciente não recorda as vivências dos primeiros anos de vida, mas repete seus mais primitivos padrões emocionais, o que propicia ao analista conhecê-lo em profundidade e levá-lo à percepção interna que tecnicamente chamamos "insight", isto é, uma visão de seus estados anímicos latentes.

Convém recordar, aqui, que desde o nascimento, quiçá desde a vida intra-uterina, a interpenetração das funções biológicas e das experiências vitais vai moldando o nosso psiquismo. Em conseqüência, organizam-se tipos de conduta, com base em afetos extremos, de amor e ódio, e em fantasias, conscientes e inconscientes, que se exteriorizam nos atritos do dia-a-dia, através duma maneira de ser mais ou menos definida e que finalmente vêm a configurar, na passagem da adolescência para a idade adulta, o caráter de cada um. Assim, de cada vez que somos solicitados pelos estímulos da convivência cotidiana, esses clichês que compõem a nossa história, que nos integram, vêm à tona. São as motivações dessas condutas, arbitrárias ou apropriadas às circunstâncias, que constituem o material de trabalho para o aqui, agora e comigo do campo analítico. Mas não se pense que o analisando não faz outra coisa senão reproduzir clichês, automaticamente. Suas associações livres compreendem a complexidade das situações existenciais e revelam, num indivíduo de inteligência mediana, um mínimo de criatividade entre as solicitações do cotidiano, de origem interna ou externa, abrangendo as diferentes áreas da personalidade - a mental, a somática e a espacial. A psicanálise mostra o quanto são várias as respostas do homem aos desafios da vida. Por isso o analista precisa estar apto para o improviso da interpretação.

Quero agora elucidar o significado da palavra "contratransferência'. A transferência já sabemos que é a projeção na pessoa do analista, do clínico ou de um amigo, de representações objetais adquiridas por introjeções pregressas. A contratransferência, à primeira vista, pode dar a impressão de ser simplesmente um sentimento contraposto aos afetos transferenciais. No convívio de duas pessoas quaisquer, pode-se transformar num fator de perturbação do bom entendimento entre ambas. Agora, transportando estas noções para o âmbito do nosso tema, a relação médico-paciente, podemos até dizer, esquematicamente, que a contratransferência é a transferência do médico para o paciente, o que poderá ajudar ou perturbar o relacionamento profissional. Ajuda, quando essa reação emocional serve de guia para a compreensão do caso, na sua totalidade psicossomática. Perturba, quando a transferência do paciente atinge resíduos infantis não-superados da personalidade do médico, o isto é bem mais freqüente do que em geral se pensa. O que acontece então? O sentimento contratransferencial, em vez de auxiliar, pode ter uma interferência negativa, deformando o raciocínio médico sobre o caso, quase nunca no seu todo, porém no que se refere a determinados aspectos da sintomatologia do paciente. Daí a importância do médico ter resolvidos os problemas básicos de caráter, ao natural, ao longo de seu amadurecimento, como cidadão e como profissional, ou com o auxilio do tratamento psicanalítico. Ademais, nunca será exagerado lembrar a sempre mutável relação médico-paciente, de consulta para consulta.

Por tudo que já disse é fácil deduzir que sigo neste tema a pauta humanística. O humanismo médico contemporâneo não implica uma tentativa de ressuscitar o médico de família do século XIX, o que seria uma utopia. Ademais, seria confundir humanismo com humanitarismo. Aquele médico de família, que está nos romances de costumes, é incontestavelmente uma figura histórica. Prestou relevantes serviços assistenciais. Talvez porque seus padrões profissionais fossem romanescos, e, por isso mesmo, possuía sensibilidade para o psíquico, capacidade intuitiva e senso de humor. Nos primórdios da minha vida profissional, tive a sorte de conhecer alguns raros espécimes daquela estirpe em retirada. Muito aprendi com eles e recorri a eles e não me canso de homenageá-los. Mas isso não acontece com os professores de Faculdade. Refiro-me aos velhos clínicos gerais do interior, heróicos autodidatas, ainda não suficientemente reconhecidos. E já que falei em capacidade intuitiva, sinto-me no dever de avivar na memória de todos o significado científico da palavra intuição, tão corriqueira e tão profunda! Com essa palavra, expressamos a conseqüência do contato súbito da consciência com os fenômenos psíquicos inconscientes por intermédio dos elos pré-conscientes. É algo que penetra além daquilo que podemos captar com os sentidos ou elaborar na base de conceitos.

Entretanto, de meio século para cá, os padrões da ciência médica vêm-se caracterizando pela linha realista do pensamento e da conduta. Tratamos de integrar, no exercício profissional, nossas sutilezas de observação, mais os recursos tecnológicos, com a compreensão racional da personalidade do paciente. Auscultando os pulmões, palpando um ventre ou interpretando um sonho, a nossa postura ética não muda quanto à consideração que o consulente nos merece.

Eu poderia encerrar aqui a minha modesta contribuição para o vosso Congresso. Não obstante, sinto-me tentado a fazer ainda umas breves ponderações de ordem sócio-cultural, referentes à configuração do mundo em que vivemos, muito mais vasto do que a nossa cidade e ao mesmo tempo muito semelhante a ela. Na fase atual do ocidente, o homem se move numa atmosfera carregada de forças contraditórias e ameaçadoras, conturbando o seu sentido de realidade externa, têmporo-espacial, e de realidade interna, profunda, atemporal, que pertence em grande parte ao domínio da fantasia inconsciente. Os fatores desencadeantes desse clima de expectativas ansiosas, cujas conseqüências se ampliam através das crenças mágico-animistas ressuscitadas, são, num círculo humano mais imediato, o medo e, no plano universal, os efeitos catastróficos da explosão populacional - "o mais importante e o mais grave de todos os problemas que atualmente pesam sobre a espécie humana", na opinião autorizadíssima de Julian Huxley.

A história da medicina no século XX carateriza-se por duas linhas norteadoras de aparências opostas: de um lado, a multiplicação das especialidades; de outro, a concepção psicossomática, unificadora.

Seria ingênuo pensar que essas linhas do pensamento médico se contrapõem e que nunca se encontrarão. Pelo contrário, completam-se, a serviço de humanidade. A técnica realiza prodígios na semiologia e na cirurgia, jamais sonhados pelas gerações de ontem, do século passado. O atendimento humanístico serve de válvula de escape para as tensões e conflitos internos.

Enquadramos o nosso tema de hoje nas normas conceituais do humanismo psicanalítico, que nos serve de guia para não nos deixarmos deslumbrar pela técnica, a ponto de esquecermos a personalidade do semelhante enfermo. E o fazemos sem nenhum messianismo, dentro das regras da ciência e da arte de curar. Ciência e arte, essas, em perpétuo devir.

Cyro Martins.
Caminhos - ensaios psicanalíticos.
Porto Alegre, Movimento/Instituto Cyro Martins, 1993.p. 147 e segs.

 

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