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O Vórtice Mágico - Cyro Martins  E-mail
Estante do Autor - histórias vividas e andadas

 

Fins de 1936. Ainda em Quaraí. Domingo de tarde. Monotonia atroz. Chego à janela. As ruas estão naturalmente desertas. Apenas vi e fiquei observando o vulto gasto dum conhecido idoso até sumir-se na volta da esquina. Havia muita luz na peça e o sol castigava os móveis. Experimentei um certo mal-estar ao olhar de novo para a rua vazia, enigmática como uma reticência. O cascalho brancacento esfarinhava-se numa poeira fina que redemoinhos travessos faziam dançar de vez em quando. Puxei a cortina. E enquanto a minha mão executava esse ato simples, lembrei- me da bobagem dos que quebram a luz para fazer ambiente, na ilusão de que o ambiente está do lado de fora. Recuo, ligo o rádio e me recosto numa velha cadeira apoltronada. Sintonizei com a "Belgrano" para ouvir o noticiário. O nazismo estava cada dia mais ameaçador. Passei para outra estação. Um tango amenizou a humanidade. Esperava outros, quando o "speaker" anunciou um concerto de música espanhola: Albenis, Manoel de Falia, outros. Bueno, pensei, vou dar uma escapada da vida besta, porém sentia-me pesadão para a finura do programa. Tentei o enlevo espiritual, suspendi a respiração, imobilizei-me num esforço convencional. A atitude não ajudou. Seria preferível, então, procurar um programa mais leve. Esbocei um gesto. A meio andar, porém, a mão hesitou. Conhecia a música que estava tocando. Sempre me fizera sofrer. Me pareceu sentir flutuar em torno, mas logo vi que não era em torno, era dentro de mim, uns frêmitos de sentimentos esquisitos.

Transmissão nítida. Som límpido. E eu me deixando envolver, deliberadamente, já um tanto confiante em mim mesmo, pela volúpia das ondas sonoras, extasiado. Meio adormecido, fui arrebatado para o mundo conturbado de tragédia e paixão dos espanhóis. Pairava num universo de turbilhões, onde as perspectivas não se ajustavam às medidas comuns. Diluíra-se, no encantamento súbito, a minha noção do cotidiano.

O vórtice mágico bateu-me à porta da tranquilidade estaganada, desencadeando uma subversão na minha vida. O conteúdo vulcânico da "Danza Ritual dei Fuego" despertou em mim, rapaz provinciano, anseios tumultuosos e obscuros.

O instante supremo se apagou. Os dedos trêmulos desligaram o rádio, porque decidira não ouvir mais nada. Porém o encantamento se prolongava cada vez mais para as profundidades do meu ser, tangendo-me rumo às eternas intrigas líricas do homem, insolúveis e absorventes. Renovando-se sempre, a cada geração.

Levantei da cadeira. Não havia testemunha para presenciar o gesto ufano que fiz, como se proclamasse: o sonho existe!

Ideais jovens afloram naquele encontro do meu caminho.

Teria graça se continuasse apenas remoendo propósitos naquele compasso de espera que já durava três anos, numa repetição sem sentido de padrões desgastados, e não atentasse para os apelos do abismo interior, de onde emergiam olhos curiosos pregados no futuro!

A cidadezinha repousa, mas sei que em todas as casas existem amarguras. A minha rua é comprida e se perde idealmente no campo. Ninguém palmilha suas calçadas. Porém, se por acaso surgisse um transeunte? Seria talvez considerado um sujeito temerário por estar molestando o sossego universal daquele mundo minúsculo.

Na minha fantasia, bem poderia ser eu esse andante, exausto de ficar debruçado no parapeito da vida, por fim definitivamente decidido a viver o risco emocional de partir!

 

In: A Dama do Saladeiro - histórias vividas e andadas.
Porto Alegre, Movimento, 2000 (2ª ed.) e Contos Escolhidos. Porto Alegre, L&PM Pocket, 2008.

 

musica vortice 
Clique para assistir o vídeo "Dança Ritual do Fogo"