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A CARTEIRA* | Imprimir |  E-mail

Flávio W. de Aguiar


Seu Caluste era de per si um causo inteiro. Nascera na Itália e ainda jovem viera pro sul do Brasil. Logo se aquerenciara de vez, pegando os usos e costumes da terra. Fez pouso numa quebrada perto de Nova Prata e arranjou a casa dele como se fora um brinco. Aprendeu a língua, parecendo índio velho que falava aquilo desde criança. Primeiro foi carreteiro; depois comprou um camiãozito e num par de anos era dono de uma pequena, mas próspera transportadora. Não se limitava a trabalhar: acreditava no trabalho como a redenção do homem.

Se estava em casa no verão, vestia bombachas e tamanco; no inverno punha as botas e o poncho de lei. E dentro só usava alpargatas, daquelas Roda, e apreciava pô-las com os pés junto a um fogo de nó de pinho na lareira.

Era devoto, e se ligou nos santos do pago, além dos que trouxera da Itália. Mandou fazer uma estatueta de São Sepé a cavalo, e rezava pra ele pedindo coragem pra enfrentar a vida. Mandou fazer uma também do Negrinho do Pastoreio, e sempre pedia pra ele, se perdia alguma cousa.

Mas trouxera também de sua Itália um jeito muito pessoal de tratar os santos. Se eles não atendiam o seu pedido, ele os desancava de palavrão e xingamentos de toda a espécie. “Porco” era de somenos, só pra começar; e soltava o verbo em italiano e português, tudo misturado. Depois se reconciliava, acendia velas, confessava e ia vivendo. Seus destemperos ficaram famosos, pois a vizinhança toda ouvia, e comentava: “Seu Caluste tá de mal com o santo”.

Os anos foram passando. Seu Caluste não casou; mas se amasiou com uma Siá Poronga, de nome Gertrudes, chamada por aquele apelido pelos meninos por causa de seus conformes corporais.

Mas era tudo direito e na santa paz. Vivia cada um em sua casa, e se viam sem escândalo. Siá Poronga não podia casar porque era mulher separada de um homem que se mostrara ruim de marca, e no tempo não tinha divórcio. Era mulher respeitosa, rezava o terço, e até o pároco, já chegado numa teologia da liberação,  acabou se acostumando com aquilo, e dizia com os botões de seu sobretudo, mui moderno: “Se Nosso Senhor lá do céu permitiu, não sou eu aqui na terra que vou proibir”.

Mas um dia Seu Caluste perdeu uma carteira de estimação. Ficou muito sentido. Não era pelo dinheiro que nela houvesse; é que a carteira fora presente de seu finado pai, comprada em Florença, uma prenda. E ele se botou de reza pro Negrinho do Pastoreio, e acendeu um paco de velas, mas não adiantou. O raio da carteira não aparecia. E foi indo e foi indo até que Seu Caluste perdeu a paciência e começou a desancar o Negrinho, e foi de filho disto e daquilo até “Porco Cane” e não sei o que mais.

Foi tanto barulho que até Nossa Senhora acordou no céu. E desta vez achou que era demais. Seu Caluste precisava de um corretivo. E quando Nossa Senhora rodava a baiana o causo ficava mui sério. Nosso Senhor mesmo se escondia atrás do Correio do Povo, que naquele tempo ainda era largão, não era esse pequetitico de hoje que nem tainha embrulha, e fingia que não era com ele. Jesus Cristo arrepanhava o camisolão e saía correndo e até o Espírito Santo ia bater asa em outra freguesia. São Pedro então nem se fala: fechava a chave a porta do céu e ficava do lado de fora pra não entrar no sarilho.

E a Santa Mãe do Menino Jesus resolveu descer até a Terra e ensinar de vez aquele desbocado. Como era no Brasil, veio na figura de Nossa Senhora Aparecida, retinta como o pavio das velas que o Caluste acendia. E foi logo aparecendo no escritório do dito cujo, onde estavam as estatuetas, e pra espanto do vivente, com tudo que tinha direito: estrelinhas piscapiscando, nuvenzinhas de algodão, harpas tocando, anjinhos gorditos batendo asas, e mais uma penca de efeitos especiais. E lascou pro Caluste boquiaberto:

- Olha, é melhor parar com essa mania. O Negrinho do Pastoreio não é santo oficial, mas merece respeito como todo mundo. E depois, mandrião (Nossa Senhora gostava de um palavreio difícil), tua carteira foi tu que esqueceu na casa da Gertrudes, debaixo da cama dela, porque boa coisa vocês não andavam fazendo, e se de tudo isso uma lição se tira é que ela deve varrer melhor a casa, e não tu ficar desancando santo sem necessidade. Essa história vai te render uns bons anos no Purgatório, mas como tudo é causo do coração a gente no céu até que perdoa. Segue fazendo o bem e xingando menos.

E aí Nossa Senhora sumiu, com sua esteira de anjinhos e a música de fundo. O Caluste ficou no espanto um par de minutos, mas foi logo vestindo o poncho pra ir até a casa da Gertrudes pegar a carteira. Ao fechar a porta do escritório não se conteve. Virou pro Negrinho e falou:

- Malandrino! Bambino sem vergonha! De preguiça chamou a mamma pra fazer o serviço!

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*Da série “Uns causos”.