Isidoro Palma vinha derrotado. Esfalfados, ele e o cavalo, a expressão de caiporice estampada no semblante, e um ar triste de derrota nos gestos. Descia o Caverá. Ao tranco, que o montado não dava para mais. Na estrada não havia rasto de ninguém. Os aramados em extensões enormes deitados no chão, o pasto quebradiço e branco, e as lavouras sem viço, minguadas, davam uma desolada impressão de abandono. Meia tarde. Sol de dezembro castigando a terra. A cintilação áspera das distâncias cegava. E na encosta dos cerros, e no fundo das baixadas, o abrigo da sombra das restingas. Mais adiante, à beira-estrada, quietas e sós, raras árvores franqueando-se buenas ao andante estafado para uma sesteada de alívio. Havia um ano atrás, bem justo, passara ali mesmo. Mas que brutal mudança! Daquela vez, que alegria solta! Nos companheiros, nos campos, nos cerros, nas árvores, nos animais! E ele, fanfarrão, alteando a estampa moça, era decerto mais feliz na gaiatice geral. Tinha motivos demais para tamanha alegria. Trazia aquilo bem vivo na memória. A tropa cruzara ali de manhã. Os pingos recém-potreados, alarifes e graxudos,resvalavam os cascos brutos naquela fartura de capim ainda molhado da serenada grande. E os índios levavam dentro do peito ímpetos xucros de carga. E o capitão Isidoro Palma, à frente do seu grupo guapo, mais resolvido do que nunca pra o que viesse, perna estaqueada no pingo arpista, era a esperança da coluna. E agora? Tudo mudado! Era funda a mágoa do gaúcho caipora, vendo a mesma paisagem gloriosa de outro tempo estirar-se hostil aos seus olhos cansados. Quando o sol entrou, já vinha longe do Caverá. Atravessava agora a várzea do Cantagalo. Sempre ao tranco, como se não levasse pressa. Alheio à instigação da paisagem. As vistas varando a meia luz do horizonte quase morto, rumo a um rancho no Garupá. Lá, elançando o busto na procura do que vinha nas distâncias, uma chinita esperava impaciente o dono do seu coração. Aquela noite, devagar mesmo, havia de chegar. O cavalo parou. O índio o convidou de leve com a espora. Nada. O montado não dava mais. Isidoro Palma apeou, fronte franzida num pressentimento. E sem queixa, sem maldições, com muita cautela, com muito mimo, com muita pena desencilhou o pobre pingo, para não judiar do flete companheiraço. O gaúcho, estirado nos arreios, integrou-se na paz daquele chão. Longe, num estirão de léguas, subindo de trás do Jarau uma montoeira de nuvens afogueadas. E no céu alto e aberto, na rasura dos planos e nas árvores perdidas, o jeito pesado das coisas imóveis. Quando acordou no outro dia, vinha apontando o sol. De pé, varreu a várzea num golpe de vista. A meia légua, um piquete guerreiro. A perseguição aos derrotados continuava. Endereçou-se ao cavalo ainda espichado na grama miúda. Chegou cauteloso. Amimou-lhe a anca, o lombo, as crinas. Levou o buçal com cuidado. E a custo se convenceu que lhe morrera o pingo. Recalcando a crua mágoa, ficou tempo parado diante do flete companheiro de muitas noitadas de amor, de incontáveis carreiradas de peleia e tava, de muita corrida braba de boi, e de brutais arriscadas na guerra. O piquete inimigo vinha perto. Reluziam ao sol os dentes rilhados do animal. E os olhos vidrados pareciam fixar o perfil acabrunhado do guerreiro. Os perseguidores galopearam. O tropel se espraiou longínquo alarmando no descampado. Um grito e mais outro e um berreiro estalou. Luziram espadas contra o sol nascente. Lenços e palas revoaram sacudidos pelo vento. Isidoro Palma tinha ainda a sua adaga fiel. Caiu hirto, em golpe duro, como um pau sobre o cavalo morto.
*in: Campo Fora. (e-book) Porto Alegre: IEL, 2014. (pgs: 62-64) Disponível em: http://livrariadoiel.blogspot.com.br/2014/04/campo-foracampo-afuera.html
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